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CAFÉ DA MANHÃ

Margarete Hülsendeger

   

      Todos já haviam saído. Na cozinha, agora silenciosa, ela desfrutava do café da manhã. A quietude da casa a fazia se sentir estranhamente calma. Segura até.

     A última gota de café escorreu da xícara para a sua boca. Esse era o sinal para se levantar. Na pia, a louça suja a chamava. Com a prática adquirida em anos de rotina doméstica limpou a mesa deixando-a livre de qualquer migalha de pão. Seu marido e filhos não se importavam com a sujeira. “E por que se importariam? Ela não estava ali para isso? Manter tudo sempre limpo e organizado?”, pensou, sem se sentir aborrecida com a situação.

    Abriu a torneira regulando a água quente e fria. Esponja. Detergente. Xícara. Ensaboar. Enxaguar. Escorrer. E tudo de novo com o pires, a colher e a faca. Sua mente voou para longe. Só suas mãos funcionavam. Esponja. Detergente. Prato...

     Suas mãos deslizaram por sobre a superfície branca e como em uma câmara lenta ela o viu cair. Nem pensou em segurá-lo. Ele bateu primeiro na beira da pia para, então, ir se espatifar no chão. Simples assim. Antes um prato, agora um amontoado de cacos brancos espalhados pelo piso.

     Ela ficou imóvel, olhando. Surpreendeu-se com a sua falta de reação. Não gritou. Não se moveu. Náusea. Sentiu náusea. E, sem querer, viu-se exatamente assim: em pedaços. Cada um deles se esforçando em encontrar a metade que o tornaria novamente um.

     Ela sempre lutou para não se quebrar. Sua única preocupação era a de se manter inteira. Provar todos os dias, a si mesma, que os medos do passado haviam ficado para trás. O quarto escuro nunca existira. O toque frio e insistente sobre o seu corpo jamais ocorrera. A culpa. O medo. A escuridão. Tudo um grande e terrível pesadelo.

      Tanto esforço, tanta energia gasta para não se partir e agora, na sua cozinha imaculadamente limpa, tudo voltava. Nada havia sido esquecido.

     Encostada na pia, ainda imóvel, ela permanecia fitando os cacos da sua louça branca espalhados pelo chão. Tornara-se uma estátua. Respirando com dificuldade, desejava apenas se sentir novamente segura. Protegida.

     Segurança. Quantas vezes havia fugido? Quantas vezes tentara se esconder? No entanto, sempre era encontrada. E depois a sujeira. Uma sujeira difícil de remover. Essa era a pior parte do seu pesadelo. Mas ela se esforçava. Até hoje ela se esforçava. Deixar tudo imaculadamente limpo. Seu corpo. Sua mente. Sua vida.

     Sente seus pés molhados. A pia havia transbordado. Ela se afogava. Tinha de reagir, voltar a ser inteira, esquecer os pedaços. Esquecer a escuridão e a dor.

     Saindo da sua imobilidade de estátua ela fechou a torneira. De forma eficiente pôs-se a secar o piso. Para os cacos brancos de seu prato quebrado não olhou mais. Com a vassoura varreu-os para fora da sua cozinha e da sua vida.

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e, apartir de agora com o "Tiro de Letra".

 

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