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Conto

           

Cuidado com a formiga!

Marcelo Moraes Caetano

 

Ok, ok, ok e ok. Anastácia é uma formiga com dois olhos enormes. Se formiga tem olhos é o que você quer saber: se formiga tem olhos. Não sei, nunca reparei, mas a formiga é minha e a minha tem, posso provar. Quer ver? Veja: "Uma formiga com dois olhos enormes!" Já viu! Ou vai dizer que você ainda não imaginou uma formiga com dois olhos? (e enormes). Está comprovado. Aquilo que você imagina comprova aquilo que vê. E comprovar significa ser. E ser significa rir muito de quem não é. (Não necessariamente o contrário.) Saibamos. Agora, ainda mais difícil que ter dois olhos enormes é isto: que seus dois olhos, de tão enormes, chegam a ser maiores do que a cabeça. Duvida? Isso aí é difícil de imaginar - mesmo. Só que imaginar é com você, trabalho seu. O meu é es-cre-ver. Pouco, muito, ir escrevendo, ir escrevendo. Que se dane o resto! Você trate agora de ver na sua frente uma formiga com dois olhos, e que eles sejam maiores do que a cabeça. Já foi? Deixa assim. Muito bem. (Eu só tenho pena se este livro estiver sendo ilustrado por alguém. Você gostaria de ser um ilustre ilustrador para, um dia, assim, chegarem a você lhe dizendo - que desenhe uma formiga com dois olhos, e - para completar - maiores do que a cabeça? Tenha paciência!) Acaba de ser fisicamente comprovado que essa formiga tem dois olhos maiores do que a cabeça. Fisicamente sim, porque escrever também é ser físico. A imaginação é comprovável cientificamente, e, a propósito, se você acredita na velocidade da luz, deve saber que a do pensamento é, perto daquela outra, assim como dez Vias Lácteas olhando para a sua filha mais recente, Anabela, o grão de areia. Que diversão! Que coisa! Mas, na verdade, isso de ter dois olhos e de tais olhões serem gigantes nem influi tanto na história não, sabe? mais para ter o que falar da Anastácia, porque, além de ser formiga, ela é uma criatura muito simpática e cheia de cabelos negros na cabeça. O problema é que é formiga; e problema maior é que ser formiga é osso duro; e daí que ninguém dá muito crédito para o que ela fala, ou faz, ou arma, ou apronta, sabe? É um probleminha. Quando todas as formigas estão em fila, carregando miolo de pão, farelo, cisco, Anastácia fica na contramão, pensando, pensando, pensando...

- Pára de pensar, Anastácia! Está atrapalhando o tráfego de formigomóveis! - grita logo alguém.

E Anastácia volta à posição normal, que é fluir com os formigomóveis. Mas não conformada. As formigas a acham um problemão, vivem dizendo, quando param um pouco para respirar (o que é muito, muito raro, porque formigas são as únicas criaturas que conseguem respirar até enquanto trabalham), então, quando param para respirar, às vezes fazem um comentário sobre Anastácia, mas quase sempre criticando-a, coitada.

- Anastácia isso!...

- Anastácia aquilo!...

Mas ela queria era alguma coisa diferente.

Aquilo de formigas indo e vindo, todo o tempo, em fila indiana, carregando farelinho, cisquinho, etc-inho., aquilo incomodava! Tudo bem que eram formigas, e formigas eram feitas mesmo para aquele serviço. Formigas eram feitas mesmo para aquele serviço? E se Anastácia plantasse um sol? e se construísse um mar? e se levantasse uma montanha? e se voasse nos abismos da pedreira? e se fosse ao outro lado do universo e voltasse para contar às amigas: é assim e assado? e se prendesse um furacão na garrafinha? e se em vez de carregar farelo de doce elas cozinhassem dez mil bolos confeitados? Não era muito mais ilógico? e por isso correto? Talvez seus olhões vissem longe. Provavelmente mais longe do que os das outras formigas. Talvez fosse - ou - meio doida? Bem, mas o fato é que carregar e carregar o tempo todo era um problema. E essa formiguinha, meio atrevida, resolveu sua atitude mais radical: falar com Sua Majestade, a Rainha das Formigas! Mas isso não é nada fácil. Imagine o seguinte: um assessor, outro assessor, outro assessor, outro assessor e mais outro assessor. Aí sim vinha, enfim, o assessor da assessora da Rainha das Formigas, ela sim levava até a própria. Desistiu da idéia? Pense, vamos... Imaginar formigas em fila é fácil... Os assessores só têm de especial que são formigas mais bem-vestidinhas, como para um encontro importante, um acontecimento. A Rainha era muito cheia de empáfia! Diziam que mal conseguia se mexer, de tão grandona e preguiçosa (mais grande do que preguiçosa, porque seja feita justiça). Mas até que, no total, ela era meio coitada, que viver assim cercada de gente chata (ou de formiga chata) há de deixar pessoa (e formiga) de miolos fundidos, certo? E todas as outras formigas iam e vinham, subiam e desciam, saíam para voltar... nheco, nheco...

- Este formigueiro é um horror! - coitada da Anastácia!

Ok. Então Anastácia teve outra idéia melhor: nada de enfrentar formiguinhas arrogantes, ora essa! Onde já se viu? (E ver era com ela mesma, com olhões de coruja!) Onde já se viu tanta petulância? Setecentos assessores para quê? Tenham a santa paciência! (Anastácia era braba, lá com seus cabelos em maria-chiquinha, compridas, limpas de xampu, sempre penteadas com cuidado. Cuidado com ela! - Mas já não combinamos que o trabalho de imaginar não é meu? Deixa nossa história em paz que eu vou em frente sem pensar! Pense você, se é que ainda se prende a essas besteiras...) Anastácia pensou: seria mais fácil encontrar um tubarão sem dentes do que falar com a Majestosa Majestade Mágica após enfrentar mil assessores. (Ela não pensou "tubarão sem dentes", porque nem nunca ouvira falar em tubarão. Só falei isso para podermos visualizar melhor o enredo da história, ok?) Sim. Então. Fazer alguma coisa? Mas é claro, impossível é não fazer. Teve uma idéia, pensou. Pensar era com ela mesma. Seu primeiro passo foi falar com Adelaide, a costureira, e pedir-lhe que lhe fizesse um manto igualzinho ao da assessora da Rainha, em tudo. Adelaide haveria de questionar muito o pedido, mas, como fosse amiga à beça da Anastácia, e lhe confiasse muito no coração, aceitaria. De fato aceitou. Começou a tirar as medidas de Anastácia: pescoço, peitos, ombros, cintura, mil pernas, como toda formiga, estava ficando muito parecida à assessora.

- Ó Anastácia, mas para que esta roupa?

- Para um baile à fantasia que vai acontecer perto da touceira.

- Não estou sabendo.

- É que só chamaram as formigas mais novinhas, sabe como é, né, Adelaide?

- É, filha, estou ficando velha mesmo! Nem me chamam mais para esses bailes. No meu tempo eu ia (ri, ri, ri...).

E Adelaide fazia tudo certíssimo. Até porque formigas fazem tudo certíssimo. Tanto, que formigas deveriam se chamar "certíssimas", em vez de "formigas", nome mais sem quê nem porquê! Em um dia a roupa ficou pronta, e Adelaide entregou-a a Anastácia com várias recomendações para tomar cuidado no baile, com esses rapagões de hoje que mal valiam as calças vestidas, com o excesso de comida de festa, que geralmente faz mal, com aquilo, com isso, e com mais não sei o que lá. Anastácia acenou com a cabeça que "sim" (seus olhões quase a fizeram ficar de cabeça para baixo quando ela se abaixou para fazer "sim", de tão grandões e pesados), e pegou a roupinha e, cheia de cuidados para não amassá-la, saiu agradecendo enquanto andava e respirava. No mesmo dia, foi ao assessor do assessor do etc... da assessora da Rainha. Encontrou-o muito alerta, como sempre. Disse-lhe ao ouvido:

- A mãe da Marieta (Marieta é a assessora da Rainha) está chamando-a urgentemente!

O assessor do assessor do etc... da assessora da Rainha ficou apavorado, achando ser algo muito grave, pelo tom de voz que a Anastácia fez, que sabia fazer tons de voz dos mais variados, incluindo-se os graves. E o assessor foi correndo, atropelando os vários assessores, para conseguir, o mais rápido possível, avisar à assessora o urgente chamado de sua mamãe. Como você já pode imaginar, aquela fila de assessores nem pôde ver direito a rapidez com que o assessor, avisado por Anastácia, foi correndo avisar a assessora da urgência. Esta, mais rápido do que o assessor que a avisou, veio correndo ver o que poderia ser com sua mãe. E você já pode tratar de imaginar a fileira de assessores vendo agora a assessora quase levantar vôo de tão rápida, voltando em companhia do assessor avisado por Anastácia. Eles dois saíram correndo. Foram juntos o assessor e a assessora. Mas o formigueiro era enorme, e a mãe da assessora da Rainha, a dona Julieta, uma senhora formiga muito gentil que passava o dia rindo e a noite sonhando com algodão, morava tão longe de sua filha, que eram necessárias três horas de caminhada formigante para se chegar até ela. E foi quando a Anastácia aproveitou. Fantasiou-se de assessora da Rainha. E veio correndo para o lugar vago deixado pela própria assessora, a Marieta. A fila de assessores logo imaginou que era a própria assessora voltando ao seu lugar. Nem se perguntaram muita coisa. Só encostaram entre eles lá suas antenas e soltaram umas faíscas que logo logo se apagaram como chispinha de fogo. Também porque a Anastácia passou que nem era com ela!... Só você vendo! Quando chegou à Rainha, Anastácia ficou entusiasmada e ao mesmo tempo decepcionada: porque que Rainha estranha!... Era uma formiga formiga, só que meio grandona além do normal, e desajeitada, e toda despenteada, e meio banguela, e quase desarrumada, e rindo à toa, e estabanada (no curto espaço de quatro segundos derrubou dois vidros de perfume da perfumadeira, um chapéu da chapeleira, e três porta-retratos da porta-retrateira), e, enfim, uma doidivanas.

- Mas que Rainha estranha! - Só podia pensar assim.

A Rainha nem a viu entrar, porque ficava se abaixando para pegar alguma coisa derrubada e derrubava outra, que imediatamente se abaixava para pegar, derrubando outras duas, pegando-as, derrubando cinco, apanhando seis, e três ao chão... Anastácia quase voltou. Aí a Rainha milagrosamente se voltou para trás sem derrubar nadinha, e viu Anastácia e pensou que era a Sua assessora. E lhe falou assim:

- Marieta, você já deu as ordens de hoje?

- É... Não... - Mas a Anastácia é simpática e inteligente - Pode repetir, Vossa Majestade?

- Marieta: formigas indo e vindo e carregando.

Então Anastácia viu o seguinte: cabia à assessora dar as ordens para que o formigueiro se mantivesse na fila indiana pelo resto dos tempos? Era tudo o que ela queria saber.

- Darei as ordens agora mesmo, Vossa Majestade!

E a Rainha agradeceu cortesmente (porque é muito nobre), e quando o fez derrubou o travesseiro no tapetinho, logo apanhado. Anastácia saiu correndo, fantasiada de Marieta. Quando chegou ao alto do formigueiro, um arauto real soou a trombeta e todos pararam para ouvir a "assessora". Anastácia se encheu toda. E proclamou:

- Sua Majestade exige que cada um faça hoje alguma coisa que sempre quis fazer!

Todos ficaram olhando. Nem criam! Nem se deram ao luxo de tentar entender! Mas Anastácia desempenhava bem o papel de assessora, e apenas concluiu:

- Andem logo, moleirões!

E todos saíram correndo, porque aquilo era uma ordem "da Rainha". Sei é que o Beto foi jogar futebol com o vizinho, e a Lulu correndo para dar um mergulhinho na chapinha de refrigerante cheia de água embaixo da árvore nem reparou que era chapinha, e não lagoa, e o Zé pula que nem um tonto e dizendo que era uma borboleta-azul, mais a Maricotinha rápida para dar um beijo no seu amor, Lelé, e o Tuca veio animadíssimo abraçando o seu amigo Dodó, a quem amava mesmo, e convidou-o para um passeio. E por aí vai. Foi uma festa! A Rainha rindo à toa, sem saber de nada, derrubou mais duas colheres. A festa chegou à casa da mãe da Marieta. A Marieta ficou uma fera! Saiu correndo, querendo voltar às pressas a seu posto. Mas, à medida que viu tanta felicidade, uma festança feliz mesmo, imagine, resolveu ir mais devagar, e mais um pouco, e mais ainda devagar, e devagarzinho, qua-se-pa-ran-do... Até que parou, e, quer saber?... Voltou correndo para passar o resto do dia com a mãe, comendo mil e uma broas das melhores. O outro dia é outro dia. Calma! O dia seguinte está no lugar. Fez assim. A Marieta passou o dia com os vizinhos, organizaram até uma espécie de churrasco formigante. Bem, mas a Marieta voltou no dia seguinte, é óbvio. Quando chegou ao quarto da Rainha, esta dormia? e muito! Mas ainda dormindo "conseguiu" jogar o lençol no chão. O fato é que a Marieta, por conta própria, resolveu que, a cada certo tempinho, decretaria aquela festança novamente no formigueiro. E foi assim que inventaram o domingo por lá. Depois foi sábado. E continua evoluindo. Chegará um tempo em que a explosão fará de todos os dias domingos. A Rainha mal sabia de suas coisas, nunca notou a diferença entre um dia normal e um dia de festa. Para ela eram todos os dias iguais. Porque uma festa pode acontecer, este é o fato número um. Mas você pode estar ou não estar nela, este é o fato número dois. É sempre fantástica a festa. Pegou. Querem uma moral para esta história? Ok, mas não se acostumem a ter morais assim tão mastigadas, para que servem seus dentes, ó tubarões arruaceiros? Imagine assim a moral: Anastácia e Marieta juntas fazem uma baita festança! Bom, tentei, mas é que de moral eu realmente não sou muito bom, sabe? Imaginem outras melhores, comecem por onde quiserem. Pronto. Que tal esta: "somos todos um só... (e sem aspas, nem parênteses

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Publicado no site www.anjosdeprata.com.br, e gentilmente cedido pelo autor

Marcelo Moraes Caetano é

Professor de Português e Literaturas; Gramático; Crítico literário; Tradutor de Alemão, Inglês, Francês e Italiano; Estudioso de Latim, Grego e Mandarim. . Escritor e poeta,com 12 livros publicados, e várias premiações (Academia Brasileira de Letras, ONU, UNESCO, Fundação Guttenberg, Sesi, Firjan).  

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