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Conto

 

O VAZIO E O SILÊNCIO

Margarete Hülsendeger

                                O próprio viver é morrer, porque não temos                                           um dia a mais na nossa vida que não                                            tenhamos, nisso, um dia a menos nela.
                                                                                   Fernando Pessoa

     Ela não sabia há quanto tempo estava sentada naquele lugar. Os sons ao seu redor tornavam-se cada vez mais distantes. Mergulhada em seus próprios pensamentos, tentava escapar da realidade que a envolvia.
     Um grito. Assustada e nervosa procurou a origem do barulho. Uma mulher, deitada na cama ao lado, se debatia. Gritando palavrões, amedrontava a todos que estavam a sua volta.
     Como em ondas, tudo retornou, fazendo-a sair do estado de torpor em que havia se refugiado. Sentiu uma raiva tão grande dominá-la que teve vontade de bater naquela infeliz para que ela parasse com aquele barulho.
      Precisava permanecer calma. Tentou encontrar uma posição mais confortável na cadeira. Sabia que horas poderiam se passar antes que pudesse sair. Angustiada, segurou com força a mão que, imóvel, descansava sobre o lençol.
      Sem querer seus pensamentos voaram para longe. Esforçou-se em trazê-los de volta, mas, não conseguiu. Reconheceu que era mais agradável manter-se longe de tudo aquilo.
      Imagens desconexas entravam e saíam da sua mente. Via-se, ainda menina, brincando na beira da praia. Em seguida, vislumbres rápidos de sua adolescência conturbada. Depois, mulher feita, no seu primeiro emprego. Lembrou, também, do dia do seu casamento. Um leve sorriso surgiu em seus lábios. Quis reter essa imagem mais tempo, mas esta, assim como as outras, também escapou.
      Um novo ruído a fez despertar desse novo devaneio. Desta vez não eram gritos, mas o barulho de objetos sendo derrubados, caindo com estardalhaço, no piso de azulejos. Pessoas passavam correndo. Rapidamente, voltou a olhar para a mão que continuava segurando. Sentiu um estremecimento. Teve medo.
     O cansaço tomou conta de todo o seu corpo. Era como um brinquedo da sua infância: uma espécie de geléia, colorida e pegajosa. Hoje, neste lugar, sentia-se exatamente assim: uma geléia. Sem forma, sem identidade e sem vontade. Rezou. Porém, nas suas orações, só encontrou o vazio.
     De repente, uma estranha quietude se estabeleceu no lugar. Não havia mais gritos. Não havia mais o barulho de objetos caindo e nem o de pessoas correndo. Tudo era silêncio.
     Lentamente, muito lentamente, seus olhos subiram da mão, que ainda mantinha presa entre as suas, para o rosto. Surpresa viu uma lágrima
uma única lágrima – escorrendo, devagar. Aproximou-se. Desejava dizer algo, qualquer coisa, não pôde. Agarrando-se aquela mão como se fosse um salva-vidas, não quis desistir. Ao contrário. Queria que a luta continuasse. No entanto, aquela lágrima solitária lhe mostrou que, finalmente, não havia mais necessidade de lutar.
     Encostando seu rosto, naquele rosto, se despediu. E, com muito esforço, soltou a mão já fria.

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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