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Conto

       

            UM ROSTO NO ESPELHO

Margarete Hülsendeger

O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse alguém percebeu o seu mistério de coisa.
                                                                                          Clarice Lispector


      Ao olhar-se no espelho, não se reconheceu. Tudo estava diferente, mas, ao mesmo tempo, nada parecia ter mudado. Quem estava diante dele era ela mesma. Porém, quem a fitava do outro lado era alguém que não conseguia mais reconhecer. Uma estranha.
     Sua mãe a avisara dessa “maldição”; no entanto, nunca lhe havia dado ouvidos. Agora, olhando-se no espelho, via a tal “maldição”, finalmente, se realizar. Sua vontade era quebrá-lo em mil pedaços. Contudo, naquele momento, algo a impediu.
     Se não fosse cômico, seria trágico. Além de não se reconhecer mais, sentia como se o resto do seu corpo, também, não lhe pertencesse. Lembrava de um tempo onde tudo era mais fácil e natural. Agora, entretanto, a atividade mais corriqueira tornara-se uma operação de guerra.
     Ela sabia que nunca havia sido uma atleta, mas, verdade seja dita, nunca dera vexame nas caminhadas de final de tarde com as amigas. Porém, até isso tinha mudado. No último domingo, por exemplo, compreendendo que se não fizesse algo, não entraria em nenhuma de suas roupas nos próximos dez anos, decidiu encarar o exercício sozinha. Assim, sem pensar duas vezes, colocou sua roupa de caminhada e pôs-se a andar.
      O dia estava lindo: temperatura amena e céu muito azul. Era um daqueles dias em que todos os problemas – inclusive o do espelho – podiam ser esquecidos. Quando já havia percorrido metade do seu trajeto costumeiro sentiu que algo estava errado. Começou pelos pés, depois se espalhou pelos quadris e acabou no pescoço. Todos – absolutamente todos – os pontos – conhecidos e desconhecidos – do seu corpo começaram a doer. Como não queria admitir que algo não estivesse bem continuou a andar, ignorando as dores como se fosse fruto da sua imaginação. Chegou em casa mancando, ansiosa por um longo e quente banho. Resultado: no dia seguinte até respirar doía!
       E novamente aquela sensação de estranhamento a dominou.
      Sem querer lembrou da adolescência. Seu corpo, naquela ocasião, também passara por transformações. Os seios apareceram, os quadris se alargaram e o rosto ficou mais alongado perdendo os traços de menina. Uma época de descobertas físicas e emocionais. Agora, ao olhar-se no espelho, descobriu novas mudanças ocorrendo. Sentia que em sua vida não havia mais espaço para longas esperas e sonhos muito elaborados. O tempo tornara-se o seu maior inimigo.
      – MALDITO ESPELHO! – gritou, golpeando a sua superfície.
     Antes mesmo de conseguir se recompor ouviu passos rápidos no corredor:
      – MÃE? MÃE? Tá tudo bem? – chamou ansiosa a filha mais velha.
     Sua vontade era gritar, ainda mais alto, que nada estava bem. Tudo havia virado de cabeça para baixo e ela não conseguia encontrar o caminho de volta para si mesma. No entanto, controlou-se e, respirando fundo, respondeu:
      – Não te preocupa, Raquel, estou bem. Não aconteceu nada.
      - Como não aconteceu nada?! E esse barulho? Alguma coisa quebrou? – perguntava a filha através da porta do banheiro.
      – Já disse: ‘tá tudo bem! Foi só o espelho que trincou sozinho.
     – Sozinho? Que loucura é essa? Mãe, dá para abrir essa porta? ‘Tá ridícula esta nossa conversa!
      Ela não queria abrir a porta. Ainda não. Precisava se acalmar, colocar os pensamentos em ordem. Porém, sabia que se não a abrisse, Raquel acabaria chamando alguém para arrombá-la. Há algum tempo percebia os olhares preocupados da filha.
      Com vagar, foi até a porta e a abriu.
      Raquel entrou rapidamente no banheiro e, depois de se certificar que a mãe estava bem, foi até o espelho para constatar que, realmente, ele havia trincado.
      – Mãe, como isso foi acontecer? Que coisa mais estranha.
      – Já te disse, não sei. Foi de repente, enquanto escovava os dentes.
     – Será que há algum espírito rondando a nossa casa? Quem sabe a gente a manda benzer?
     – Tudo bem, Raquel. Vamos benzer a casa, mas quem sabe a gente sai desse banheiro e deixa esse espelho em paz? Eu não gostava mesmo dele.
     Com delicadeza foi empurrando a filha para fora do banheiro. No entanto, antes de fechar a porta, lançou um último olhar para o espelho quebrado. E, sem conseguir se conter, fez uma careta, mostrando a língua, como quem diz: “Agora eu me vinguei!”.

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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