Volta para a capa
Contos

 

A ENTREVISTA

 

Cyro Martins

 

   Chegou à sua parada antes do que já estava desejando, não obstante a pressa inicial. Deixou no ônibus, resolvidas, algumas das inquietadoras interrogações que o afligiram durante o percurso da cidade até ali. O bairro estava lindo, na sua pacatez asseada. A tarde convidava para longos passeios a pé. O crepúsculo sobre o rio, um prodígio.

   O dr. Augusto do Amaral subiu a ladeira devagar. Deteve-se um instante ao pé do enorme depósito d'água, bem no topo da coxilha em cujas fraldas se erguera o bairro, e deu um vistaço alegre na paisagem. Sentia-se desoprimido, talvez com uma certa tendência ao vibrante. Saberia governar-se, entretanto. Nunca se abandonara ao sabor das emoções. Poderia, quem sabe? começar a entrevista com essa declaração. Não lhe parecia que ficasse mal. Daria, assim, de saída, um traço grosso do seu caráter. Os leitores precisavam saber com quem estavam tratando. Bem, o repórter faria um intróito com o devido respeito, certamente. Talvez até já o trouxesse à noite, pronto, para submetê-lo à sua aprovação. Ele apararia os excessos. Ah, quanto a isso, não tinha dúvidas.

   Mas deixaria o que fosse justo e merecido. Depois daquela primeira frase, acrescentaria: "O assunto em foco, cuja repercussão a esta altura dos acontecimentos já se torna enfadonho ressaltar, é desses que apaixonam ... Mas eu não sou homem de paixões!"

   - O que é isso? Falando sozinho?

   Riu encabulado. Na frente da casa, dona Aurora, corada, de mangueira em punho, aguava o jardim.

   - Falando sozinho, eu?

  - Sim, homem, palavra, tu vinhas falando sozinho, ou então com algum companheiro invisível. Mas, que me conste, até hoje ao meio-dia não eras espírita.

   - Não é possível que ...

   Não terminou a frase, notando que a mulher, entretida em regar as plantas, desinteressara-se do caso. Assim, entrou logo, sentindo-se um tanto vexado pelo flagrante em que fora colhido. Indo direito ao gabinete, largou a pasta em cima do bureau. E, agora, era tomar algumas providências urgentes. Primeiro, recomendar que não deixassem as crianças fazer barulho, e segundo, avisar que não queria janta, tomaria apenas um copo de leite. Aurora talvez estranhasse isso e lhe viesse importunar com indagações, mas ele saberia explicar o que se passava, em poucas palavras.

   Dadas as ordens, fechou-se. Ia sentando quando se lembrou que não seria demais uma olhadela no espelho, porque, evidentemente, a entrevista seria com fotografia.

  Incontinente, dirigiu-se à porta. Ao levar a mão ao trinco, porém, hesitou. Era incrível que um homem dói sua envergadura baixasse a semelhantes preocupações. Espantoso, aquilo acontecer com ele. Que diacho, era um cidadão eminente, um professor de Direito, um  advogado provecto! Esmeros daquela ordem não lhe sentavam.

   Precisava esmerar-se, sim, na arquitetura das idéias e no polimento da forma. A propósito, podia ler algumas páginas de Rui para revigorar o estilo. O trabalho forense vicia  tanto a linguagem ... Não desejava falar como profissional, mas como intelectual, que o era, e puro, com vistas largas sobre os temas, filosóficos.

   Depois de permanecer por alguns momentos de pé, junto da porta, com uma mão no bolso e a outra no rosto, a cabeça levemente erguida, baixou os olhos sobre a roupa, concluindo, animado, que, do jeito que estivesse, para um homem da sua estatura moral, estaria bem. E até seria bom que não aparecesse demasiado engomado. Com esta convicção, sentou-se, ainda com certo empertigamento, mas foi aos poucos recostando-se, afrouxando-se, em busca da posição mais repousante, até iniciar, distraidamente, uma série de palmadinhas inconseqüentes nos braços gordos da poltrona. Com lentidão, circunvagou um olhar absorto pelo espaçoso gabinete, entretendo-se por fim na contemplação da biblioteca, em cujas prateleiras se alinhavam algumas coleções ainda por abrir. Freud, por exemplo, repousava ileso. Mas, ah, tinha o Freud completo. E já o citara em aula. Por sinal que a citação fora um pouco forçada, não se quadrando bem ao assunto. Fruto do primeiro entusiasmo, logo após a aquisição da obra. De qualquer maneira, causou o seu efeitozinho entre os alunos. Houve mesmo um que, na salda, lhe fez perguntas sobre psicanálise. Valeu-lhe a circunspecção com que o encarou e o ar distante, algo paternal e frio, que sabia assumir quando as circunstâncias o exigiam. O rapaz que deixasse aquelas cogitações para mais tarde, por enquanto tinha a absorvê-lo todas as horas, desde que se dedicasse com afinco ao estudo, às matérias do curso. De mais a mais, Freud era um tanto inquietante e - acrescentou, reverente  a orientação da Reitoria - subversivo.

   Bateram à porta.

   - Entre.

   A empregada entrou com o leite.

   - Já?

   Foi um "já" tão brusco, que fez o braço de Leonor estremecer e algumas gotas de leite escorrerem beirada do copo abaixo.  

   - Que horas são?

   - Sete e meia.

   - Que barbaridade, disponho só de hora e meia, e ainda não fiz nada!

    Não o entendendo, Leonor recuou um passo,arregalou os olhos, apreensiva. Ele virou o leite num sorvo. E imediatamente, alcançando- lhe o copo:

    - Fecha a porta, que eu preciso pensar.

   A rapariga afastou-se, receosa, estranhando aquela transformação repentina num homem  em geral tão calmo e delicado. Decididamente, se não estava, pelo menos parecia transtornado. Que olhar mais esquisito! E uns modos que não eram dele, estrambóticos! Pensar, ela também pensava, no Alceu, nos bailes do "Colombo", nas fitas, nos mocinhos das fitas, mas não precisava se encerrar para isso. Às vezes pensava cantando e batendo bife. Ia avisar dona Aurora. Aquilo não estava direito.

   -Talvez fosse pura desconfiança sua. Um doutor tem lá os seus modos diferentes de pensar ... Não iria dar uma rata. Relutou um bocado, mas acabou avi­sando. E, como resultado do seu alarme, três minutos depois Aurora torcia o trinco, sem bater antes, um tanto afobadamente.

   - Puxa, que vocês não me deixam quieto, santo Deus! - explodiu o professor, de cara arrenegada.

    - O que é que tu tens, Augusto? Estás sentindo alguma dor?

    - Tenho falta de tempo! - retrucou Augusto, secamente, imperturbável na decisão de aproveitar ao máximo os minutos que ainda o separavam do repórter.

    - E por isso é preciso ficar nessa atucanação, homem de Deus?

    Ela riu gostosamente, fazendo tremer as intumes­cências que lhe encurtavam as pálpebras inferiores.

    - Ora, por favor, mulher, me deixa em paz! - Soerguendo-se na cadeira, de sobrancelhas feu alguma coisa? - Ele não ergueu os olhos, mas teve a impressão de que a mu­lher botranzidas e punhos cerrados, parecia estar na iminência de cometer uma violência, pelo menos de dar um soco na mesa, mas na voz ela percebeu uma certa vibração humilde de súplica quase desesperada.

   - Afinal, te acontec

ara as mãos nas cadeiras, afastara um pouco as pernas e pusera um pé atrás.

    - É que daqui a pouco estará aí o homem e eu ainda não pensei nada! - deixou escapar maquinalmente, não com o tom displicente com que o desejaria, mas abafado, com uma contração nervosa na face.

    - Mas que homem?

     O jornalista, o ... repórter

     Repórter? - ela espichou o pescoço, fazendo cara de estranheza.

     Sim, uma entrevista - afirmou, após um intervalo que foi mais longo do que tencionava, procurando afetar calma e segurança, mas compreendendo que a sua conspicuidade fora arranhada.

    - Vais dar uma entrevista, então?

    Era o que faltava! O professor Augusto não pôde mais.

    Extinguiu-se-lhe a paciência. Quase dum salto, levantou-se para responder, gesticulando desapoderado de autodomínio.

    Decerto achas absurdo que um catedrático de Direito, como eu, que goza do melhor conceito, seja entrevistado?! Detesto exibicionismos, bem sabes, mas o assunto sobre o qual serei abordado é da maior relevância, interessando à imprensa, ao povo, ao Estado e, quiça, ao País!

    Cessou de falar, mas ficou-lhe cintilando nos olhos um desejo de gritar - basta! para completar o espanto de Aurora.

    O que eu acho absurdo é tu ficares nesse nervosismo. Nunca te vi assim.

     Nervosismo? Nervoso, eu?

     Augusto postara-se ao lado do bureau, numa atitude corporal de transição entre a posição de sentido e a de descanso, disposto a provar a mulher que absolutamente não estava nervoso, que ela estava dizendo asneiras.

    Aurora apreciou condescendentemente toda aquela intrepidez e, pessoa bem humorada, dificilmente removível da maciça base de realidade sobre a qual assentava a sua prudência, retirou-se sem ruído, antes mesmo que ele inciasse a "prova" da sua calma , deixando-o como queria, sozinho, entregue à urgente meditação. Silenciosa, fechou suavemente a porta, como para não afugentar ainda mais, com um estrondo insólito, as idéias que o marido tanto se empenhava em agrupar, alinhar e por fim hierarquizar.

    Homem de boa estatura, magro, cabelos pretos e ondeados, testa larga, cara comprida, nariz afilado e um tanto curvo, bigodes aparados, queixo pontudo, Augusto não se queixava do seu físico. Quando se vestia de preto, achava-se romântico. Os olhos, por momentos, tinham uma expressão hesitante.

 

   Aurora devia ter tomado providências muito enérgicas com a criançada, porque o silêncio que sobreveio na casa toda depois que ela saiu do gabinete foi praticamente absoluto. O professor reconsiderou a sua atitude e pensou nela com carinho, rendendo-se a um estado de espírito de quase risonha fadiga. Uma esposa, uma excelente companheira! Bem que ele lhe poderia ter dado uma vida melhor, de mais represen­tação, mais ventilada socialmente. Mas sempre fora um sujeito tão enfurnado! Graças a isso, entretanto, atingira a posição de que desfrutava, pois não seria malgastando o tempo em diversões que conquistaria a cátedra. Demais, nunca notara qualquer manifestação de contrariedade com a vida que levavam.

    Viu as horas - oito e dez! Deu quase um salto e estalou os dedos, alarmado com a ligeireza dos minu­tos que passavam como espectros de pernas compri­das, fazendo piruetas, contra o fundo movediço, de mágica, da sua própria inquietude.

    Fora um contratempo lastimável, por todos os motivos, aquele pequeno incidente com a mulher. Além dum tempo precioso, malgastara também boa dose da serenidade tão necessária para a ocasião. Contudo, ainda dispunha de três quartos de hora, o suficiente para um espírito como o seu, afeito à síntese, disciplinado, embora, reconhecia, um pouco lento.

   Passeou pelo gabinete, querendo ser impertur­bável. Pegou um livro ao acaso, como quem arranca uma folha de árvore, de passagem, e sai mastigando. Ao fim de duas voltas, guardou-o sem abri-lo. Por força do hábito, inclinou-se defronte ao rádio para ligá-la, mas corrigiu-se em tempo da distração.

   O repórter traria as perguntas prontas, iria improvisá-las ou pediria uma exposição geral do assunto? Fosse como fosse, ele precisava estar preparado para dizer apenas o que quisesse, e não se abandonar à batuta do entrevistador.

Augusto experimentou uma sensação desagradável de umidade morna) sobretudo nas costas, na testa e na palma das mãos. Recém se deu conta de que estava com o gabinete hermeticamente fechado. Por isso que as idéias não vinham ...

   Num gesto um tanto precipitado, abriu uma janela, tirou o casaco, meteu o nariz para o lado de fora e respirou com avidez o rico ventinho que soprava do sul, sentindo que se tonificava ao ritmo daquele exercício preparatório da grande aventura – pensar! Depois contemplou as luzes tremeluzindo no outro bairro espalhadas pela encosta do morro. Teve ímpetos de compará-las a estrelas cadentes e evocou algumas páginas nacionais famosas, como a dos pirilampos de "Chanaan", na sua opinião um dos pontos altos de Graça Aranha, e o "Caçador de esmeraldas", de Bilac, tendo mesmo atirado em surdina para a noite de peito dilatado e ressonante, como se abrigasse um enxame de marimbondos nos brônquios:

 

         "E sereno feliz, no maternal regaço

          Da terra sob a paz estrelada do espaço,

          Fernão Dias Paes Leme os olhos cerra. E morre”.

 

    E, deixando essas bolhas sonoras suspensas entre a terra e o céu, dirigiu-se à poltrona da sua preferên­cia, afundando-se devagarinho nas molas frouxas, e dessa vez para um ajuste definitivo com as idéias. Cruzou as pernas, entrelaçou os dedos e repousou neles o queixo, ficando de olhos melancolicamente espichados para a projeção imaginária da nebulosa interior. Bem poderia começar remem orando Rui Barbosa) na Bahia, ao regressar à terra natal depois de mais uma de suas campanhas famosas. "Depois disto, diante disto, nem sei como principie ... Verde ninho murmuroso onde cantou Castro ... " Entretanto, talvez não sentasse numa entrevista essa arrancada patética. Demais, não perderia por esperar. Em breve, decerto, estaria enfrentando multidões inquietas, ávidas de eloqüência e de liberdade. E então, sim, seria a hora de lhes aplicar o seu amado Rui!

   Nesse instante travou de novo um curto combate com a tendência ao desânimo e lembrou-se que não soaria mal, pelo contrário, até ficaria bem, se abrisse o "interview", como se dizia na República Velha) dirigindo-se à mocidade das escolas. E, sem pesta­nejar, viu-se repetindo Alcides Maya: "Mocidade há de ser sempre aventura e sonho, ousadia e resolução, sacrifício de energia e sacrifício de amor". Exultou ao embalo desse ondulado dois a dois do estilo de Alcides e simulou modéstia para si mesmo, alegando falta de memória para o repórter.

   O rapaz não se mostrava desinteressado, a pon­to de provocar desânimo, embora entre ele e esses grandes nomes e as belas frases, evocados pelo professor como bens culturais da sua geração, pairasse, no plano nacional, o isolamento de quinze anos de ditadura, sem eleições, sem comícios, sem liberdade de imprensa, com escassa liberdade de locomoção e outros freios. No cenário internacional, apenas a Segunda Guerra Mundial.

   - Contudo ...

   - É um gosto ouvi-lo, professor.

   - Como repositório do passado? Ou como evasão da terrível problemática de hoje?

   - Como perspectiva histórica, professor.

   - Talvez seja mais apropriado dizer: como fórmula de intercâmbio entre as gerações.