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Contos

 

A ENTREVISTA

 

Cyro Martins

 

   Chegou à sua parada antes do que já estava desejando, não obstante a pressa inicial. Deixou no ônibus, resolvidas, algumas das inquietadoras interrogações que o afligiram durante o percurso da cidade até ali. O bairro estava lindo, na sua pacatez asseada. A tarde convidava para longos passeios a pé. O crepúsculo sobre o rio, um prodígio.

   O dr. Augusto do Amaral subiu a ladeira devagar. Deteve-se um instante ao pé do enorme depósito d'água, bem no topo da coxilha em cujas fraldas se erguera o bairro, e deu um vistaço alegre na paisagem. Sentia-se desoprimido, talvez com uma certa tendência ao vibrante. Saberia governar-se, entretanto. Nunca se abandonara ao sabor das emoções. Poderia, quem sabe? começar a entrevista com essa declaração. Não lhe parecia que ficasse mal. Daria, assim, de saída, um traço grosso do seu caráter. Os leitores precisavam saber com quem estavam tratando. Bem, o repórter faria um intróito com o devido respeito, certamente. Talvez até já o trouxesse à noite, pronto, para submetê-lo à sua aprovação. Ele apararia os excessos. Ah, quanto a isso, não tinha dúvidas.

   Mas deixaria o que fosse justo e merecido. Depois daquela primeira frase, acrescentaria: "O assunto em foco, cuja repercussão a esta altura dos acontecimentos já se torna enfadonho ressaltar, é desses que apaixonam ... Mas eu não sou homem de paixões!"

   - O que é isso? Falando sozinho?

   Riu encabulado. Na frente da casa, dona Aurora, corada, de mangueira em punho, aguava o jardim.

   - Falando sozinho, eu?

  - Sim, homem, palavra, tu vinhas falando sozinho, ou então com algum companheiro invisível. Mas, que me conste, até hoje ao meio-dia não eras espírita.

   - Não é possível que ...

   Não terminou a frase, notando que a mulher, entretida em regar as plantas, desinteressara-se do caso. Assim, entrou logo, sentindo-se um tanto vexado pelo flagrante em que fora colhido. Indo direito ao gabinete, largou a pasta em cima do bureau. E, agora, era tomar algumas providências urgentes. Primeiro, recomendar que não deixassem as crianças fazer barulho, e segundo, avisar que não queria janta, tomaria apenas um copo de leite. Aurora talvez estranhasse isso e lhe viesse importunar com indagações, mas ele saberia explicar o que se passava, em poucas palavras.

   Dadas as ordens, fechou-se. Ia sentando quando se lembrou que não seria demais uma olhadela no espelho, porque, evidentemente, a entrevista seria com fotografia.

  Incontinente, dirigiu-se à porta. Ao levar a mão ao trinco, porém, hesitou. Era incrível que um homem dói sua envergadura baixasse a semelhantes preocupações. Espantoso, aquilo acontecer com ele. Que diacho, era um cidadão eminente, um professor de Direito, um  advogado provecto! Esmeros daquela ordem não lhe sentavam.

   Precisava esmerar-se, sim, na arquitetura das idéias e no polimento da forma. A propósito, podia ler algumas páginas de Rui para revigorar o estilo. O trabalho forense vicia  tanto a linguagem... Não desejava falar como profissional, mas como intelectual, que o era, e puro, com vistas largas sobre os temas, filosóficos.

   Depois de permanecer por alguns momentos de pé, junto da porta, com uma mão no bolso e a outra no rosto, a cabeça levemente erguida, baixou os olhos sobre a roupa, concluindo, animado, que, do jeito que estivesse, para um homem da sua estatura moral, estaria bem. E até seria bom que não aparecesse demasiado engomado. Com esta convicção, sentou-se, ainda com certo empertigamento, mas foi aos poucos recostando-se, afrouxando-se, em busca da posição mais repousante, até iniciar, distraidamente, uma série de palmadinhas inconseqüentes nos braços gordos da poltrona. Com lentidão, circunvagou um olhar absorto pelo espaçoso gabinete, entretendo-se por fim na contemplação da biblioteca, em cujas prateleiras se alinhavam algumas coleções ainda por abrir. Freud, por exemplo, repousava ileso. Mas, ah, tinha o Freud completo. E já o citara em aula. Por sinal que a citação fora um pouco forçada, não se quadrando bem ao assunto. Fruto do primeiro entusiasmo, logo após a aquisição da obra. De qualquer maneira, causou o seu efeitozinho entre os alunos. Houve mesmo um que, na salda, lhe fez perguntas sobre psicanálise. Valeu-lhe a circunspecção com que o encarou e o ar distante, algo paternal e frio, que sabia assumir quando as circunstâncias o exigiam. O rapaz que deixasse aquelas cogitações para mais tarde, por enquanto tinha a absorvê-lo todas as horas, desde que se dedicasse com afinco ao estudo, às matérias do curso. De mais a mais, Freud era um tanto inquietante e - acrescentou, reverente  a orientação da Reitoria - subversivo.

   Bateram à porta.

   - Entre.

   A empregada entrou com o leite.

   - Já?

   Foi um "já" tão brusco, que fez o braço de Leonor estremecer e algumas gotas de leite escorrerem beirada do copo abaixo.  

   - Que horas são?

   - Sete e meia.

   - Que barbaridade, disponho só de hora e meia, e ainda não fiz nada!

    Não o entendendo, Leonor recuou um passo, arregalou os olhos, apreensiva. Ele virou o leite num sorvo. E imediatamente, alcançando-lhe o copo:

    - Fecha a porta, que eu preciso pensar.

   A rapariga afastou-se, receosa, estranhando aquela transformação repentina num homem  em geral tão calmo e delicado. Decididamente, se não estava, pelo menos parecia transtornado. Que olhar mais esquisito! E uns modos que não eram dele, estrambóticos! Pensar, ela também pensava, no Alceu, nos bailes do "Colombo", nas fitas, nos mocinhos das fitas, mas não precisava se encerrar para isso. Às vezes pensava cantando e batendo bife. Ia avisar dona Aurora. Aquilo não estava direito.

   -Talvez fosse pura desconfiança sua. Um doutor tem lá os seus modos diferentes de pensar ... Não iria dar uma rata. Relutou um bocado, mas acabou avi­sando. E, como resultado do seu alarme, três minutos depois Aurora torcia o trinco, sem bater antes, um tanto afobadamente.

   - Puxa, que vocês não me deixam quieto, santo Deus! - explodiu o professor, de cara arrenegada.

    - O que é que tu tens, Augusto? Estás sentindo alguma dor?

    - Tenho falta de tempo! - retrucou Augusto, secamente, imperturbável na decisão de aproveitar ao máximo os minutos que ainda o separavam do repórter.

    - E por isso é preciso ficar nessa atucanação, homem de Deus?

    Ela riu gostosamente, fazendo tremer as intumescências que lhe encurtavam as pálpebras inferiores.

    - Ora, por favor, mulher, me deixa em paz! - Soerguendo-se na cadeira, de sobrancelhas franzidas e punhos cerrados, parecia estar na iminência de cometer uma violência, pelo menos dar um soco na mesa, mas na voz ela percebeu uam certa vibração humilde de súplica quase desesperada.

   - Afinal, te aconteceu alguma coisa? - Ele não ergueu os olhos, mas teve a impressão de que a mulher botara as mãos nas cadeiras, afastara um pouco as pernas e pusera um pé atrás.

    - É que daqui a pouco estará aí o homem e eu ainda não pensei nada! - deixou escapar maquinalmente, não com o tom displicente com que o desejaria, mas abafado, com uma contração nervosa na face.

    - Mas que homem?

     - O jornalista, o ... repórter

    - Repórter? - ela espichou o pescoço, fazendo cara de estranheza.

     - Sim, uma entrevista - afirmou, após um intervalo que foi mais longo do que tencionava, procurando afetar calma e segurança, mas compreendendo que a sua conspicuidade fora arranhada.

    - Vais dar uma entrevista, então?

    Era o que faltava! O professor Augusto não pôde mais. Extinguiu-se-lhe a paciência. Quase dum salto, levantou-se para responder, gesticulando desapoderado de autodomínio.

   - Decerto achas absurdo que um catedrático de Direito, como eu, que goza do melhor conceito, seja entrevistado?! Detesto exibicionismos, bem sabes, mas o assunto sobre o qual serei abordado é da maior relevância, interessando à imprensa, ao povo, ao Estado e, quiça, ao País!

    Cessou de falar, mas ficou-lhe cintilando nos olhos um desejo de gritar - basta! para completar o espanto de Aurora.

    - O que eu acho absurdo é tu ficares nesse nervosismo. Nunca te vi assim.

     - Nervosismo? Nervoso, eu?

     Augusto postara-se ao lado do bureau, numa atitude corporal de transição entre a posição de sentido e a de descanso, disposto a provar a mulher que absolutamente não estava nervoso, que ela estava dizendo asneiras.

    Aurora apreciou condescendentemente toda aquela intrepidez e, pessoa bem humorada, dificilmente removível da maciça base de realidade sobre a qual assentava a sua prudência, retirou-se sem ruído, antes mesmo que ele inciasse a "prova" da sua calma , deixando-o como queria, sozinho, entregue à urgente meditação. Silenciosa, fechou suavemente a porta, como para não afugentar ainda mais, com um estrondo insólito, as idéias que o marido tanto se empenhava em agrupar, alinhar e por fim hierarquizar.

    Homem de boa estatura, magro, cabelos pretos e ondeados, testa larga, cara comprida, nariz afilado e um tanto curvo, bigodes aparados, queixo pontudo, Augusto não se queixava do seu físico. Quando se vestia de preto, achava-se romântico. Os olhos, por momentos, tinham uma expressão hesitante.

 

   Aurora devia ter tomado providências muito enérgicas com a criançada, porque o silêncio que sobreveio na casa toda depois que ela saiu do gabinete foi praticamente absoluto. O professor reconsiderou a sua atitude e pensou nela com carinho, rendendo-se a um estado de espírito de quase risonha fadiga. Uma esposa, uma excelente companheira! Bem que ele lhe poderia ter dado uma vida melhor, de mais representação, mais ventilada socialmente. Mas sempre fora um sujeito tão enfurnado! Graças a isso, entretanto, atingira a posição de que desfrutava, pois não seria malgastando o tempo em diversões que conquistaria a cátedra. Demais, nunca notara qualquer manifestação de contrariedade com a vida que levavam.

    Viu as horas - oito e dez! Deu quase um salto e estalou os dedos, alarmado com a ligeireza dos minutos que passavam como espectros de pernas compridas, fazendo piruetas, contra o fundo movediço, de mágica, da sua própria inquietude.

    Fora um contratempo lastimável, por todos os motivos, aquele pequeno incidente com a mulher. Além dum tempo precioso, malgastara também boa dose da serenidade tão necessária para a ocasião. Contudo, ainda dispunha de três quartos de hora, o suficiente para um espírito como o seu, afeito à síntese, disciplinado, embora, reconhecia, um pouco lento.

   Passeou pelo gabinete, querendo ser impertubável. Pegou um livro ao acaso, como quem arranca uma folha de árvore, de passagem, e sai mastigando. Ao fim de duas voltas, guardou-o sem abri-lo. Por força do hábito, inclinou-se defronte ao rádio para ligá-la, mas corrigiu-se em tempo da distração.

   O repórter traria as perguntas prontas, iria improvisá-las ou pediria uma exposição geral do assunto? Fosse como fosse, ele precisava estar preparado para dizer apenas o que quisesse, e não se abandonar à batuta do entrevistador.

Augusto experimentou uma sensação desagradável de umidade morna sobretudo nas costas, na testa e na palma das mãos. Recém se deu conta de que estava com o gabinete hermeticamente fechado. Por isso que as idéias não vinham ...

   Num gesto um tanto precipitado, abriu uma janela, tirou o casaco, meteu o nariz para o lado de fora e respirou com avidez o rico ventinho que soprava do sul, sentindo que se tonificava ao ritmo daquele exercício preparatório da grande aventura – pensar! Depois contemplou as luzes tremeluzindo no outro bairro espalhadas pela encosta do morro. Teve ímpetos de compará-las a estrelas cadentes e evocou algumas páginas nacionais famosas, como a dos pirilampos de "Chanaan", na sua opinião um dos pontos altos de Graça Aranha, e o "Caçador de esmeraldas", de Bilac, tendo mesmo atirado em surdina para a noite de peito dilatado e ressonante, como se abrigasse um enxame de marimbondos nos brônquios:

 

         "E sereno feliz, no maternal regaço

          Da terra sob a paz estrelada do espaço,

          Fernão Dias Paes Leme os olhos cerra. E morre”.

 

    E, deixando essas bolhas sonoras suspensas entre a terra e o céu, dirigiu-se à poltrona da sua preferência, afundando-se devagarinho nas molas frouxas, e dessa vez para um ajuste definitivo com as idéias. Cruzou as pernas, entrelaçou os dedos e repousou neles o queixo, ficando de olhos melancolicamente espichados para a projeção imaginária da nebulosa interior. Bem poderia começar remem orando Rui Barbosa na Bahia, ao regressar à terra natal depois de mais uma de suas campanhas famosas. "Depois disto, diante disto, nem sei como principie... Verde ninho murmuroso onde cantou Castro ... " Entretanto, talvez não sentasse numa entrevista essa arrancada patética. Demais, não perderia por esperar. Em breve, decerto, estaria enfrentando multidões inquietas, ávidas de eloqüência e de liberdade. E então, sim, seria a hora de lhes aplicar o seu amado Rui!

   Nesse instante travou de novo um curto combate com a tendência ao desânimo e lembrou-se que não soaria mal, pelo contrário, até ficaria bem, se abrisse o "interview", como se dizia na República Velha dirigindo-se à mocidade das escolas. E, sem pesta­nejar, viu-se repetindo Alcides Maya: "Mocidade há de ser sempre aventura e sonho, ousadia e resolução, sacrifício de energia e sacrifício de amor". Exultou ao embalo desse ondulado dois a dois do estilo de Alcides e simulou modéstia para si mesmo, alegando falta de memória para o repórter.

   O rapaz não se mostrava desinteressado, a pon­to de provocar desânimo, embora entre ele e esses grandes nomes e as belas frases, evocados pelo professor como bens culturais da sua geração, pairasse, no plano nacional, o isolamento de quinze anos de ditadura, sem eleições, sem comícios, sem liberdade de imprensa, com escassa liberdade de locomoção e outros freios. No cenário internacional, apenas a Segunda Guerra Mundial.

   - Contudo ...

   - É um gosto ouvi-lo, professor.

   - Como repositório do passado? Ou como evasão da terrível problemática de hoje?

   - Como perspectiva histórica, professor.

   - Talvez seja mais apropriado dizer: como fórmula de intercâmbio entre as gerações.

   Na pausa que sobreveio o professor procurou captar a essência da situação criada entre ele  e o repórter, representante das novas gerações. Ele, apenas um cinqüentão, mas intelectual muito de cátedra, muito de gabinete, muito de frases, vibrando no plano do geral e do abstrato. O repórter, uma presença superficial, porém com um toque de atualidade a renovar-lhe o interesse pelo dia-a-dia que some hoje e reaparece amanhã transfigurado, numa corrida sem transcendência, mas conflituosa, isto é, viva. Ele vivencia o panorama mundial do momento com preocupações de ordem intelectual, ganhando às vezes muita altura, tanta que se perde no vago e no obscuro. Por sua vez, o repórter-geração nova vive de forma demasiado angustiosa a situação presente, de molde a bloquear-se para o passado e a não ter futuro.

   Depois de tais reflexões, o professor sentiu de novo a necessidade de abrir outra clareira evocativa na imaginação, tão do feitio da sua natureza nostálgica.             

   - Você nasceu em ...

   - 1921.

   - Bem, então você ainda não tinha nascido. E o curioso é que eu mesmo não estou certo do ano em que se passou o episódio que lhe pretendo narrar. Creio que foi em 1919. Por ai. Estávamos no auge da ditadura provinciana. Uma ditadura positivista. Excêntrico, não lhe parece?, esse rebento comtista perdido cá por estas paragens. O fenômeno ainda está à espera do sociólogo que o há de explicar.

   Depois de uma pausa, durante a qual aguardou em vão uma intervenção menos simplista do repórter que lhe permitisse vôos mais amplos, prosseguiu, evocativo:

   - Os milicianos haviam assassinado em plena rua um líder estudantil oposicionista. Dois ou três dias após o fato, os estudantes improvisaram um comício no centro da capital. Numa praça, rodeado de ami­gos e admiradores, o tribuno da cidade conversava. Quando os manifestantes o localizaram, exigiram-lhe a palavra. De pé, no mesmo banco em que estivera sentado até então, ouriçado, o tribuno dominou o tumulto com o olhar. Imponente e memorável, pre­parava-se para açoitar com o verbo o ato odioso. E a frase da arrancada ficou famosa: "Matar a polpa viva do coração da mocidade é apedrejar o futuro!"

   - Assim, contada com este calor, a história fica bonita, professor!

   Augusto sentiu que o seu élan humanista tocara afinal a alma do repórter, atingindo-a em determinado núcleo sensível, não saberia avaliar por quanto tempo. Pensou, então,  exaltado, que a ocasião havia chegado, e não era de perdê-la, tão fugaz é o entusiasmo desses rapazes! Com efeito, depois de tantos circunlóquios, bem poderia amenizar o aprumo e sondar - ah, doía-lhe, doía-lhe muito confessar-se! - como um ambicioso vulgar, através da possível repercussão que a entrevista viesse a ter, quais as chances políticas para um homem da sua envergadura moral.

   Parou. Depois, pensativo:

   - Confidencialmente lhe direi que ...

   - Prudência, doutor! Não se apresse em desvendar suas intenções secretas. Olhe, neste, como noutros, o segredo é a alma do negócio. Demais, o sr. é um candidato potencial a desafiar oportunidades.

   - O sr., hein, jovem, não perde vasa para me fazer insinuações, as mais descaradas.

   - E de quem veio a provocação?

   - Reconheço que não pesei suficientemente as minhas palavras, seu tratante!

   - O seu embaraço me anima a lhe fazer mais uma insinuaçãozinha. Ou mais umas. Vamos, professor, dê curso à imaginação. Veja-se em plenário, na Câmara ou no Senado. Na tribuna, o famoso jurisconsulto dos pampas. Mais uma vez o Brasil vai curvar-se ante o Rio Grande, como aliás a Europa já o fez ante o Brasil! Expectativa. A nação silencia para ouvi-Io, aguardando um pronunciamento sensacional. Começo polido. Frases redondas, dessas cadenciadas que se espicham e se enrolam no final enchendo a boca do orador ao colar as duas pontas, como um chiclé balão. Ainda considerações gerais.

   - A casa ...

   - ... espera uma definição de atitude.

   - Entre em matéria, sóbrio, direto, como um parlamentar moderno.

   - De resto, o regozijo do país pela reconstitucionalização, pela perspectiva de reforma dessa mesma constituição malnascida, com promessas de eleições diretas ...

   - Cuidado, professor, não se comprometa, fique no terreno das divagações teóricas, onde sempre é possível uma manobra estratégica. Ataque a chama­da revolução meio de soslaio, através da exposição erudita de princípios políticos. Evoque Roosevelt, por exemplo, e faça a apologia das quatro liberdades. E também, de passagem, para ser um pouco mais obje­tivo, acene na direção da Frente Ampla, por onde, de tão larga, a qualquer momento é possível entrar ou sair. Mas volte em seguida a afirmar a sua presença de humanista nos domínios da política. Entretanto, olho com os imprevistos, com as manhas da vida pública, com os interesses mesquinhos, próprios e alheios, e tenha sempre em vista a advertência de um dos seus autores prediletos da juventude, Raul Pompéia: "Vem de  longe a enfiada das decepções que nos ultrajam!”

   De chofre, olhou em torno, atônito. Espantoso, como se perdera em fantasias! E como malgastou o tempo! Não, que esperança, não faria papel de paspa­lhão. O sentido  rigorosamente realista preponderaria de agora em diante no encadeamento de suas idéias. Ah, antes, porém, diria na entrevista, ou mais tarde, no parlamento, que esses trechos dos autores da sua mocidade, remembrados ao acaso das evocações ...

   -Cristalize no melhor vernáculo os seus con­ceitos, de molde a incorporá-los definitivamente ao patrimônio da nossa eloqüência parlamentar.

   - No discurso de estréia, analisarei sobretudo a encruzilhada histérica que vivemos.

   - Algo assim como um ajuste de contas com a problemática do Estado Moderno?

   - Um paralelo das forças comprometidas no conflito social contemporâneo.

   - E até agora, professor, de substancial?..

   - Bem, preocupa-me a compreensão integral da conjuntura internacional, condição sine qua non

   - Em todo caso, ensaie algumas reflexões objetivas.

   Augusto meneou a cabeça como duvidando da própria capacidade. Contudo, predispôs-se a pensar, seriamente. E uma idéia aflorou, simples, com uma ingenuidade de virgem de antigamente, não desfigu­rada pelo estilo político, espiou a amplidão do novo mundo de Augusto, aspirou o cheiro dos livros, cabrio­lou como um diabinho arisco e ia já desprender-se do cativeiro em que a mantinha havia anos o bom senso do professor, quando foi impiedosamente puxada da boca de cena com um sequíssimo "não serve". Não. Nada de confidências. Objetivo e s6brio, o que deveria ser. Também não entraria na parte substancial da questão, perigosa, comprometedora. Limitar-se-ia aos aspectos exteriores, de interesse aned6tico, o que constituísse, enfim, aquilo que vulgarmente se chama um bom prato de jornal. Como remate, doutrinaria um pouco sobre a matéria, uma pitadinha de cultura apenas. Poderia até citar autores. No fim, os leitores ficariam sabendo tanto do assunto quanto antes da leitura. Sair-se-ia assim galhardamente da empreitada, dentro da técnica usual.

   Mas... Foi um relance de memória, imediata­mente sumido. Entretanto, inconformada com a reclusão, a lembrança ficou bracejando no escuro, fazendo barulho, perturbando-lhe a serenidade de raciocínio que por fim ia alcançando. Na verdade, não podia negar que a questão tinha certos aspectos que confinavam com a política estadual. Talvez houvesse nascido daí a idéia das reportagens sobre o problema. Claro que se esquivaria de abordar esse lado, bastante escabroso, principalmente num momento convulsio­nado como aquele, com eleições à vista, comícios e listas de candidatos a deputado e senador em formação.

   Acendeu um cigarro, atirou a cabeça para trás, afagou uma pêra imaginária, os olhos postos no teto e o pensamento patinando naquilo como um disco emperrado: senador, senador, senador, sena ...

   - O senhor nunca foi político militante?

   - A política partidária nunca me seduziu.

   Opa, aqui poderia citar o Eça: "A melancólica servidão dos partidos .. ."

   Como brotara firme e pronta a resposta! Firme, pronta e neutra! Portas escancaradas para todos os ventos ...

   Isto é o que se chamava, nos bons tempos, de­volver o mote ao pé da letra.

   - No entanto, o senhor descende duma família tradicionalmente partidária.

   - Ah, isso eu não nego. Meu avô foi castilhista combatente em 93 e o meu pai chefe político no seu município durante cerca de trinta anos.

   - Sim, muito conhecido o coronel...

   -Amaro.

   - Justamente. Admira-me que o sr. tenha preferido a carreira universitária, em lugar de se valer da tradição familiar, da cama já feita, para subir na política. De quantos apertos financeiros o sr. se teria livrado? Claro que não estou a insinuar... a insinuar desonestidades.

   - Vocês, jornalistas, são dum atrevimento!

   - E acaso não somos nós que fazemos a glória dos políticos?

   - E também a desgraça.

   - Muito ajudados por eles mesmos. Mas não nos abespinhemos antes do tempo, vamos agarrar o touro à unha. Veja professor, as eleições estão aí, para dentro de meses, os novos partidos andam à cata de nomes. Uma oportunidade, com tanta gente dos velhos quadros cassada!

   Augusto voltou-se para um lado, lentamente, como se estivesse vendo alguém abrir devagarinho uma janela.

   - O amigo fala como um homem experiente e não como um jovem açodado.

   - Cuidado com essas palavras em desuso, profes­sor. Ficarão bem na cátedra, mas na tribuna política ...

   - Deplorável, sem dúvida, a deteriorização do vernáculo!

   - Eu o compreendo, professor, e porque o com­preendo não me julgo demasiado indiscreto pergun­tando-lhe qual dos agrupamentos atuais, apelidados partidos, merece a sua simpatia?

   - Creio que ainda há tempo de sobra para con­templar, pesar as probabilidades de um lado, de outro, e afinal resolver.

   - E ficar ardoroso partidário!

   - Bem, agora sim, o sr. está se tornando indiscreto.

   - Perdão! A profissão nos trai a toda hora.

   Imóvel na poltrona, os músculos do dorso e das panturrilhas doloridos da tensão exagerada, Augusto parece escutar. Mas intimamente experimenta um frêmito de ênfase, como um trovejar longínquo em dia de céu de aço, quando ainda não se sabe de que lado irá vir a chuva. Até agora não cogitara do programa de nenhum dos partidos em formação, mais que por alto. Entretanto, para ser franco consigo mesmo, podia adiantar que não via diferenças de monta entre um e outro, nem interesses inconciliáveis entre ambos.

   - Posso registrar?

   - Não. Estava apenas meditando em voz alta.

   - É lástima. Perde-se, assim, um conceito lapidar. ..

   - Não exagere, amigo, a importância deste “cândido discretear”.

   - Deplorável, deplorável!...

   - Deplorável o quê?

   - Esse "cândido discretear".

   - Um homem deslocado é um homem ridículo.

   - Opa, gostei, professor. E lhe digo mais, a habilidade de algumas de suas respostas me persuade duma certeza ...

   - Posso saber que certeza é? Veja, agora sou eu que pergunto. - E torceu o pescoço para um lado, com uma vaga noção de que havia ali uma outra presença além da sua. Sorriu com afabilidade. Bem poderia ser aquele o momento ótimo para bater o flash.

   - Com efeito, não me atrevo. Um pedido, porém, eu lhe faria: não despreze tanto a politica, o sr. tem muitas possibilidades nesse vasto campo.

    - O sr. está me pervertendo, não esqueça que sou um homem afamiliado.

   Bem encostado agora no espaldar da poltrona, a cabeça estirada para trás, o indicador da mão direita enrolando um negalho de cabelo, com uma sensação interior de pestanejar alvissareiro que lhe amolecia os amadurecidos propósitos de abstenção política, come­çava a tolerar que a imaginação consumasse orgias. Aquela entrevista sairia num momento psicológico e fatalmente chamaria as atenções gerais para a sua pessoa. Demais, aquele repórter, tão jeitoso e convincente... Bem que o rapaz lavraria um tento se sugerisse a sua... (sentiu escrúpulos, corou) ... candidatura ao  parlamento. E logo, num crescendo de ousadia: naturalmente, pelo partido mais garantido.

   - Está  claro  também  que  o  sr. responderia  favoravelmente  a  certas exigências usuais nesses casos, para fins eleitorais...

   - Está claro, está claro, por aí não trancaria o barco! - explodiu sem a mínima hesitação, quase jovial.

   Surpreendeu-se meio de pé, falando em voz alta. "Que triste figura estarei fazendo eu? A minha linguagem se vulgariza como se já estivesse apertando mãos e pedindo votos!"

   A moleza da poltrona e a mornidão do ambiente, porém, o reconciliaram logo com a voz macia do interlocutor.

  - Não diga isso, professor, não recue, siga avante, que uma trajetória triunfal o espera. Não se impres­sione com o papel que está representando, é o papel de todos, o papel da vida corrente, cópia servil. Aspira a originalidade de idéias ou de atitudes? Então não se meta em politica.

  - Aceita um cigarro? Não lhe ofereço charutos porque não fumo charutos.

  - Mas fumará.

  - Simpático otimismo!

  - No entanto, levo uma vida apertada.

  - Ah! - sobressaltou-se, estranhando a brusca  mudança de tom e de rumo na conversa do rapaz.

  - O sr. me olhou com descrença? Um repórter ganha muito pouco.

  - Absolutamente. A sua pessoa me inspira confiança e muita simpatia. Se lhe puder ser útil...

  - Já sei onde o sr. mora. Usarei de franqueza.

  - Nem eu supunha outra coisa.

  - Agora, uma frase para o remate, algo de positivo e, como direi?, vibrante.

  - Pondero-lhe que nem tudo que eu disse deve ser publicado.

  - Perca o cuidado, professor.

  - Parece que esvaziei a taça. O sr. teve o mérito, ou o demérito, de abalar os meus princípios!

  - Eu trouxe apenas um pouco do cheiro das ruas.

  - E como me fez bem esse cheiro! Enche-se a boca com a palavra PROFESSOR, os alunos dizem, outros repetem, a gente se convence que realizou uma grande vida! No meu caso, tem sido uma comovente ruminação de sebentas. E, enquanto isso, os anos vão correndo, os cabelos embranquecem, a inteligência caruncha ...

  - As oportunidades passam ...

  - As oportunidades passam! - Sacudiu a cabeça repetidas vezes. - Desculpe este desabafo, mas esta ocasião foi providencial. Agora compreendo que anda­va encadernado há  anos. Encadernado de impoluto! Gratidão, uma infinita gratidão, é o sentimento que lhe voto.

  - Quer dizer, então, que está disposto a romper ...

  Arrebatadamente, gesticulando:

  - Sim, a quebrar, estraçalhar o marasmo da minha vida!

 

   Já todos dormiam na casa, dona Aurora, as crian­ças, a empregada. O bairro adquirira um silêncio de campanha distante. Só as rãs não tinham emudecido, mas o doutor Augusto não as ouvia.

  Foi nessa paz que tilintou o telefone. Sobressaltando-se, estremunhado, o professor correu a atendê-lo.

   - Sim, é ele mesmo.

   - Desculpe, doutor, mas surgiu um contratempo sério.

   - Sim.

   - O caso é o seguinte: o diretor deu contra-ordem, suspendendo as reportagens que pretendíamos iniciar amanhã com a sua entrevista. Não avisei antes porque tive que fazer um serviço urgente de rua.

  - Sim.

  - Agradeço muito a boa vontade que demonstrou comigo.  

  -Sim.

  - Conto consigo para outra ocasião.

  - Sim, Está bem. - Largou o fine num gesto mole apatetadamente, e ficou ainda tempos no gabinete, amrgando a humilhação sofrida, até recobrar um pouco da dignidade antiga a fim de poder enfrentar a invevitável pergunta da mulher: "Deste a entrevista?"

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Extraído de: MARTINS, Cyro.  Contos escolhidos. 2ed. Porto Alegre: L&PM, 2008.

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