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Contos

                             Aos 20 anos
                           

                                                                                     Aluísio de Azevedo

     Abri minha janela sobre a chácara. Um bom cheiro de resedás e laranjeiras entrou-me pelo quarto, de camaradagem com o sol, tão confundidos que parecia que era o sol que estava recendendo daquele modo. Vinham ébrios de Abril. Os canteiros riam pela boca vermelha das rosas; as verduras cantavam, e a república das asas papeava, saltitando, em conflito com a república das folhas. Borboletas doidejavam, como pétalas vivas de flores animadas que se desprendessem da haste.

     Tomei a minha xícara de café quente e acendi um cigarro, disposto à leitura dos jornais do dia. Mas, ao levantar os olhos para certo lado da vizinhança, dei com os de alguém que me fitava; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário, e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso; e, ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã daquele Abril, ou porque aquela manhã era alegre e animadora como o sorriso que desabotoou nos lábios da minha vizinha, o certo foi que neste dia escrevi os meus melhores versos e no seguinte conversei a respeito destes com a pessoa que os inspirou.

     Chamava-se Ester, e era bonita. Delgada sem ser magra; morena, sem ser trigueira; afável, sem ser vulgar; uns olhos que falavam todos os caprichosos dialetos da ternura; uma boquinha que era um beijo feito de duas pétalas; uns dentes melhores que as jóias mais valiosas de Golconda; cabelos mais lindos do que aqueles com que Eva escondeu o seu primeiro pudor no paraíso.

     Fiquei fascinado. Ester enleou-me todo nas teias da sua formosura, penetrando-me até ao fundo da alma com os irresistíveis tentáculos dos seus dezesseis anos. Desde então conversamos todos os dias, de janela contra janela. Disse-me que era solteira, e eu jurei que seríamos um do outro.

     Perguntei-lhe uma vez se me amava, e ela, sorrindo, atirou-me com um bogari que nesse momento trazia pendente dos lábios.

    Ai! Sonhei com a minha Ester, bonita e pura, noites e noites seguidas. Idealizei toda uma existência de felicidade ao lado daquela meiga criatura adorável; até que um dia, já não podendo resistir ao desejo de vê-la mais de perto, aproveitei-me de uma casa à sua contígua, que estava para alugar, e consegui, galgando o muro do terraço, cair-lhe aos pés, humilde e apaixonado.

-«Ui! Que veio o senhor fazer aqui? » perguntou-me trêmula, empalidecendo.

- « Dizer-te que te amo loucamente e que não sei continuar a viver sem ti! Suplicar-te que me apresente a quem devo pedir a tua mão, e que marques um dia para o casamento, ou então que me emprestes um revólver e me deixes meter aqui mesmo duas balas nos miolos! »

     Ela, em vez de responder, tratou de tirar-se do meu alcance e fugiu para a porta do terraço.

- « Então?… Nada respondes?… » inquiri no fim de alguns instantes.

- « Vá-se embora, criatura! »

- « Não me amas? »

- « Não digo que não; ao contrário, o senhor é o primeiro rapaz de quem eu gosto, mas vá-se embora, por amor de Deus! »

- « Quem dispõe de tua mão? »

- « Quem dispõe de mim é meu tutor… »

- « Onde está ele? Quem é? Como se chama? »

- « Chama-se José Bento Furtado. É capitalista, comendador, e deve estar agora na praça do comércio. »

- « Preciso falar-lhe. »

- « Se é para pedir-me em casamento, declaro-lhe que perde o seu tempo. »

- « Por quê? »

- « Meu tutor não quer que eu case antes dos vinte anos e já decidiu com quem há de ser. »

- « Já?! Com quem é? »

- « Com ele mesmo. »

- « Com ele? Oh! E que idade tem seu tutor? »

- « Cinqüenta anos. »

- « Jesus! E a senhora consente?… »

- « Que remédio! Sou órfã, sabe? De pai e mãe… Teria ficado ao desamparo desde pequenina se não fosse aquele santo homem. »

- « É seu parente? »

- « Não, é meu benfeitor. »

- « E a senhora ama-o?… »

- « Como filha sou louca por ele. »

- « Mas esse amor, longe de satisfazer a um noivo, é pelo contrário um sério obstáculo para o casamento… A senhora vai fazer a sua desgraça e a do pobre homem! »

- « Ora! O outro amor virá depois… »

- « Duvido! »

- « Virá à força de dedicação por parte dele e de reconhecimento por minha parte. »

- « Acho tudo isso imoral e ridículo, permita que lho diga! »

- « Não estamos de acordo. »

- « E se eu me entender com ele? Se lhe pedir que me dê, suplicar, de joelhos, se preciso for?… Pode ser que o homem, bom, como a senhora diz que é, se compadeça de mim, ou de nós, e… »

- « É inútil! Ele só tem uma preocupação na vida: ser meu marido! »

- « Fujamos então! »

- « Deus me livre! Estou certa de que com isso causaria a morte do meu benfeitor! »

- « Devo, nesse caso, perder todas as esperanças de…? »

- « Não! Deve esperar com paciência. Pode bem ser que ele mude ainda de idéia, ou, quem sabe? Pode ser que morra antes de realizar o seu projeto… »

- « E acha a senhora que esperarei, sabe Deus por quanto tempo! Sem sucumbir à violência da minha paixão?… »

- « O verdadeiro amor a tudo resiste, quando mais ao tempo! Tenha fé e constância é só o que lhe digo. E adeus. »

- « Pois adeus! »

- « Não vale zangar-se. Trepe de novo ao muro e retire-se. Vou buscar-lhe uma cadeira. »

- « Obrigado. Não é preciso. Faço todo o gosto em cair, se me escorregar a mão! Quem me dera até que morresse da queda, aqui mesmo! »

- « Deixe-se de tolices! Vá! »

     Saí; saí ridiculamente, trepando-me pelo muro, como um macaco, e levando o desalento no coração. Ah! maldito tutor dos diabos! Velho gaiteiro e libertino! Ignóbil maluco, que acabava de transformar em fel todo o encanto e toda a poesia da minha existência! A vontade que eu sentia era de matá-lo; era de vingar-me ferozmente da terrível agonia que aquele monstro me ferrara no coração!

- « Mas não as perdes, miserável! Deixa estar! Prometia eu com os meus botões. »

     Não pude comer, nem dormir, durante muitos dias. Entretanto, a minha adorável vizinha falava-me sempre, sorria-me, atirava-me flores, recitava os meus versos e conversava-me sobre o nosso amor. Eu estava cada vez mais apaixonado.

     Resolvi destruir o obstáculo da minha felicidade. Resolvi dar cabo do tutor de Ester.

    Já o conhecia de vista; muita vez encontramo-nos à volta do espetáculo, em caminho de casa. Ora, a rua em que habitava o miserável era escusa e sombria… Não havia que hesitar: comprei um revólver de seis tiros e as competentes balas.

- « E há de ser amanhã mesmo! » jurei comigo.

     E deliberei passar o resto desse dia a familiarizar-me com a arma no fundo da chácara; mas logo às primeiras detonações os vizinhos protestaram; interveio a polícia, e eu tive de resignar-me a tomar um bode da Tijuca e ir continuar o meu sinistro exercício no hotel Jordão.

     Ficou, pois, transferido o terrível desígnio para mais tarde. Eram alguns dias de vida que eu concedia ao desgraçado.

     No fim de uma semana estava apto a disparar sem receio de perder a pontaria. Voltei para o meu cômodo de rapaz solteiro; acendi um charuto; estirei-me no canapé e dispus-me a esperar pela hora.

- « Mas », pensei já à noite, « quem sabe se Ester não exagerou a cousa?… Ela é um pouquinho imaginosa… Pode ser que, se eu falasse ao tutor de certo modo… Hein? Sim! É bem possível que o homem se convencesse e… Em todo o caso, que diabo, nada perderia eu em tentar!… Seria até muito digno de minha parte… »

- « Está dito! » resolvi, enterrando a cabeça entre os travesseiros. « Amanhã procuro-o; faço-lhe o pedido com todas as formalidades; se o estúpido negar, insisto, falo, discuto; e, se ele, ainda assim, não ceder, então bem. Zás! Morreu! Acabou-se! »

     No dia imediato, de casaca e gravata branca, entrava eu na sala de visitas do meu homem.

     Era domingo, e apesar de uma hora da tarde, ouvi barulho de louça lá dentro.

     Mandei o meu cartão. Meia hora depois apareceu-me o velhote, de rodaque branco, chinelas, sem colete, palitando os dentes.

    A gravidade do meu trajo desconcertou-o um tanto. Pediu-me desculpa por me receber tão à frescata, ofereceu-me uma cadeira e perguntou-me ao que devia a honra daquela visita. Que, lhe parecia, tratava-se de cousa séria…

- « Do que há de mais sério, senhor comendador Furtado! Trata-se da minha felicidade! Do meu futuro! Trata-se da minha própria vida!… »

- « Tenha a bondade de pôr os pontos nos ii… »

- « Venho pedir-lhe a mão de sua filha… »

- « Filha? »

- « Quer dizer: sua pupila… »

- « Pupila!… »

- « Sim, sua adorável pupila, a quem amo, a quem idolatro e por quem sou correspondido com igual ardor! Se ela não o declarou ainda a V.S.a é porque receia com isso contrariá-lo; creia, porém, senhor comendador, que… »

- « Mas, perdão, eu não tenho pupila nenhuma! »

- « Como? E D. Ester?… »

- « Ester?!… »

- « Sim! A encantadora, a minha divina Ester! Ah! Ei-la! É essa que aí chega! » exclamei, vendo que a minha estremecida vizinha surgiu na saleta contígua.

- « Esta?!… » balbuciou o comendador, quando ela entrou na sala, « mas esta é minha mulher!… »

- «?!… »

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