Ao pé da serra
Marcos Vinícius
O rapaz na beira do balcão é sem dúvida alguma um sujeito trabalhador. Dá pra ver o sol fundido na sua pele. Até o vidro do copo parece retorcer-se quando ele o tem nas mãos pedregosas. Porque, por aqui, respira-se pedra. Fachadas revestidas de pedras. Calçadas de pedra. Artesanato de pedras. Conversas de pedras. Daqui do bar não dá pra ver. Mas logo adiante, depois do Ribeirão da Toca, uns pequenos desertos brotam feita hemorragia através da Serra. Esse mesmo rapaz aí, com seus braços troncudos e veias protuberantes, passa o dia todo no interior dessas frestas. De marreta nas mãos, dilacerando e erguendo blocos maciços. Cercado por caminhões fumacentos, carregadeiras amarelas e sujeitos com pulmões cheios de areia. Acorda sempre às cinco da manhã. Liga o rádio a meio volume. Coloca água para ferver e vai logo tratar das criação.
A mulher não é bonita, mas pelo menos é certa. Aceita o bafo de cachaça, mas não gosta de mentiras. Com o tempo, eles estabeleceram um acordo silencioso, desses que não se combina nada de boca, mas que a gente sabe como é que funciona. Você me respeita e eu te respeito.
Enquanto olha o relógio, Curimba calcula tudo de cabeça. A conta do bar, o dinheiro que tem que dar para a mulher pagar a padaria e, principalmente, o tempo que ainda lhe sobra.
- Mais uma aí Raimundo.
- Copo cheio?
Roda o imborná sobre o tronco enquanto estende o copo vazio.
- Não... Tá tarde... A mué me mata.
O copo absorve a bebida do litro. Que bruta dose, pensa Curimba. Mas não diz nada. Tira o maço de cigarros do bolso. Além desse só mais um. Lembra da conta da padaria. Aperta as notas dentro do bolso. Cinqüenta reais não valem nada. Olha os cigarros no interior do balcão. Depois eu compro. Mas está com fome. Em casa já tem janta. Tereza deve estar assistindo novela. Era para ter ido direto pra casa. Matar aquele frango que compro do Zé da Mata.
- Dá um pedaço de carne pra mim – diz apontando para estufa.
Enfia o cigarro na boca. Puxa o isqueiro amarelo do bolso. O pedreiro pára do seu lado.
- Que pinga que é essa aí, Curimba?
- Do Tião Ladário.
- Boa, né?
- Ah... Fala a verdade, sô. Num tá teno outra igual não, viu? Dá um bico aí.
- Tô meio parado.
- Ocê falou! Larga mão de bobagem.
- Tô memo. Sério.
Raimundo coloca o tira-gosto no balcão. Dois pedaços de carne e duas batatas.
- Aproveita o tira-gosto. Eu vou tomar.
Sente um ardor na garganta. Depois a carne gordurosa entre os dentes. Fica um resto de pinga no copo. Os meninos pagam as fichas de sinuca e vão embora.
- Vai tomar não, Vicente?
- Sei não Curimba. Se eu começar eu não paro.
Vira o resto da pinga. Mastiga a batata.
- Cerveja ocê toma, né?
- Tomo.
Toma uma comigo então, Vicente. Dá uma cerveja pra nóis aí, Raimundo.
A mão na aba do freezer. O abridor ao redor da tampa. Dois copos americanos no balcão. O ranger do isopor ao receber a garrafa.
- Coloca um som aí pra nóis, Raimundo.
O que há de errado nisso? Não vem mulher nenhuma aqui. Uma melodia alegre faz vibrar os alto-falantes empoeirados. A espuma jorra até a borda do copo.
Curimba não sabia de muita coisa; mas há que se dizer a verdade, também não era tolo. E não havia engolido o desaforo de mais cedo. Um dia igual outro qualquer, é o que pensou ao sair de manhã. Mesmo no ônibus velho que levava ele e seus companheiros pro serviço não via nada de diferente. Tinha a chuva é verdade. Mas nunca foi homem de perder dia por pouca coisa. Fez o que tinha de fazer. Catou o guarda-chuva e apertou o passo. A capa de chuva ficou em cima do tanque.
Na pedreira não foi diferente. Trocou uma prosa com a turma no rancho. Bebeu um gole de café da garrafa. Acendeu um cigarro e caminhou sobre a areia molhada. Trabalhava sozinho. A maioria trabalhava de dois. Enquanto um rancava as pedras a poder de marretadas o outro às cortava na banca com esquadro e taiadera. Sistemático demais o Curimba. Rancava na parte da manhã e cortava na parte da tarde. Mas não foi esse o problema. Cada um tem seu jeito. E a gente passa a respeitar cada um do jeito que é. Mas desaforo ninguém aceita.
- Essa chuvinha aí vai vará à noite...- retruca o pintor quebrando o próprio silêncio.
Os dois no balcão concordam sem dizer nada.
- Eu vi na previsão que vai até quarta-feira – comenta o dono do boteco.
- Mas também tava precisando. O tempo tava seco demais - argumenta Curimba.
- Chuvinha como essa é bom pra dormir...- diz o pintor.
- Pois é... – disse Corimba enquanto recordava do acontecido.
Antes tivesse ficado dormindo. Foi o que pensou na hora que voltava pra casa com o olhar perdido na janela do ônibus. Mas o que poderia ter feito? Sair no tapa? Não podia perder o serviço. O João foi muito burro ao ter feito aquilo.
- Que merda é essa? – gritou o patrão feito um cão raivoso, ao ver Curimba, João e Melinho, parados.
- Ah, minha nossa senhora... O homi vai toca o guiso – sussurrou Melinho.
- Como que trabaia nessa chuva, Melinho. Como? – retrucou João.
Minutos antes quando a chuva deu de engrossar, todos colocaram suas capas e continuaram a trabalhar. Curimba revirou o imborná, e nada da capa de chuva. Teve de parar. Contrariado, é verdade. Não é de seu feito ficar atoa no serviço. Melinho e João debaixo de seus guarda-chuvas estavam na mesma situação.
- Que palhaçada é essa!? Com ordem de quem que vocês estão parados?
Curimba permaneceu imóvel. Torna-se parte da paisagem. Olhar no chão e mão tremendo. Porcaria, como eu esqueço a merda da capa.
- Com ordem de quem? – repetiu o patrão enquanto o olhar da pedreira voltava-se silencioso para ele.
Curimba calado. Melinho arriscou abrir a boca pra dizer alguma coisa meio gaguejada.
- A gente...
A gente é a puta que lhe pariu, seu criolo. Quem manda aqui sou eu. Voltem por serviço agora!
Os dois filhos do patrão estavam ao lado do pai igual padres ao redor do bispo. Com seus rostos bem barbeados, as mãos gordas, botinas gigantescas. Encobertos por guarda chuvas gigantescos.
Melinho saiu meio desnorteado. Curimba o seguiu a passos calmos. João não se moveu. Curimba não olhava pra trás. Então veio o horror...
O patrão enfiou um tapa na cara de João. O empregado revidou. Mas estava só naquele fim de mundo. Até o chão estava contra ele ou, com muita sorte imparcial. Os filhos se revelaram mais covardes que o pai. Jogaram João no chão. Curimba olhou pra trás nesse momento. Viu Melinho correr gritando:
- Pára, pára...
O pessoal dos “bancos" saiu correndo pra ver a cena. Alguns se divertindo, outros indignados e a maioria por força do acaso.
- Pára, pára...
Curimba era uma pedra.
- Pára, pára...
Lá estava João, feito um cachorro, com o corpo encolhido totalmente disposto a acolher um outro chute no lombo enquanto o vento carregava seu guarda-chuva retorcido.
- Pára, pára...
Depois do segundo chute, Melinho se jogou sobre o corpo do amigo. Os agressores se afastaram. Os outros empregados mal chegaram, e o patrão tratou de espanta-los.
-Voltem ao serviço! Corja...
Curimba se aproveitou do grupo pra voltar no anonimato pro serviço. Melinho e João juntaram os trem e foram embora a pé. Uma caminhada de dez quilômetros debaixo de chuva.
Depois disso silêncio. As marretas urravam caladas. O metal cortando a pedra - mudo. Os homens estavam quietos em suas trincheiras como um exército desesperançado.
Curimba está bêbado. Duas moedas na carteira é o que resta de seu dinheiro. Vai devagar pela calçada de pedra. Ao dobrar uma esquina e atravessar a rua passa de frente do Bar do Zuca. Pensa em tomar mais uma. Aqui pode pegar fiado. No entanto, abaixa a cabeça e segue pra casa.
- Covarde!
Seu coração dispara. Olha pra trás. Mas não há ninguém. Só o burburinho do boteco. Tem a ligeira impressão de ver João dentro do bar. Mas prefere apertar o passo.
Entra devagar. A mulher não diz nada. Acomoda suas coisas como todos os dias. Toma seu banho. A mulher lhe prepara a janta e vai deitar. Curimba chega logo em seguida. Deita-se com extremo cuidado. Não encosta na esposa. Vira pro canto, faz sua oração mas não dorme. Apertando a mão contra o rosto - chora feito criança.
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Marcos Vinícius Lima de Almeida é
Mineiro, contista (desculpem o pleonasmo), estudante de filosofia e bibliotecário de sua cidade (Luminárias). Escreve desde os 13 anos, tem alguns contos publicados na Internet e um romance - Inércia (2009) O conto acima foi selecionado para integrar uma coletânea a ser publicada ainda este ano pela Universidade Federal de São João del Rey-UFSJ. Conheça-o melhor através de seu blog:
http://prosacom.blogspot.com/
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