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Contos

                     Café

Fernando Scaff

      O cheiro de café ocupou todo o pequeno apartamento de um quarto, no centro da cidade. Eram sete horas da manhã de um dia nublado de inverno quando Evelyn abriu a porta, meio cambaleante com os cabelos vermelhos completamente bagunçados, uma calcinha da capricho preta e um baby doll branco de algodão, escrito “the world is mine”. Usava havaianas roxas que estralavam quando ela andava pelo piso de madeira do apartamento.
      Pedro saiu do banheiro com uma revista em quadrinhos nas mãos. Vestia somente seus óculos, uma cueca boxer preta e pantufas de patas de onça. Tinha um corpo definido, mas não era musculoso. Uma barba por fazer e um cabelo bem cortado.
- O que faz aqui, Evy? – O garoto jogou a revista sobre o sofá e entrou na cozinha.
- Café.
- Quer um pão com manteiga?
- Por que você sempre pergunta isso? Quero. Torrado na chapa, por favor.
- Pergunto sempre por que não quero você se sentindo à vontade na minha casa, todos os dias de manhã.
- Você é o melhor café da cidade, gatão.
      Ele tirou o coador de cima da garrafa térmica. Jogou o filtro no lixo e colocou duas xícaras na mesa. Depois, se dedicou a cortar os pães e colocá-los na frigideira. Ela se esticou para um balcão próximo e trouxe açúcar e mel para a mesa.
       Após um tempo, estavam tomando café juntos. Ele seu café com mel e pão quente. E ela, seu café com açúcar e torradas marrons.
- Você sempre usa essa calcinha?
- É a melhor para dormir.
- É nojento.
- Eu não durmo com você, não preciso fazer charme com calcinhas fio dental.
- E se eu quisesse que você dormisse?
      Evelyn encarou-o brutalmente.
- Desculpe. Eu... meus dias estão difíceis...
- Quer falar de trabalho na mesa? Seu bostinha de teleatendente.
- ... Fui demitido ontem.
- Bem feito.
      Continuaram em silêncio por mais uma xícara. O pão era só farelo sobre os pires, e os dois com as feições que melhor representavam uma segunda-feira.
- Como alguém pode ser demitido em um domingo? – Ela perguntou enquanto ele tirava a louça da mesa.
- Me pegaram lendo no trabalho. O coordenador do meu grupo falou que eu não podia. Em algum momento chamei ele de burro, sei lá. Então... fui pra casa mais cedo.
- Você não deveria ler no trabalho. Quando esta trabalhando tem que estar com a cabeça focada nisso.
      Ele olhou para ela incredulamente.
- Primeiro: Domingo é um porre! Ninguém liga. Quer que eu faça o que? Fique olhando a merda da tela do computador até um cliente ligar? Segundo: Qual era a cor dos olhos do último cara que você atendeu?
- E eu lá preciso saber disso?
- Alguma característica dele?
- Olha aqui. Eu não vou ficar prestando atenção em qualquer cara que tem dinheiro e não quer bater punheta, tá legal?
- Então não venha me dizer como eu tenho que levar meu trabalho!
- Ex-trabalho.
- Evy, sai daqui.
- Nunca mais me trate como uma qualquer.
- Desculpe. Te ver pela manhã me fez me sentir bem.
- Então, se quiser continuar vendo, é bom não falar de trabalho, ter sempre esse pó de café e, jamais, vestir uma roupa de manhã.
- Você é muito abusada Evy, mas tudo bem, combinado.
      Se conheceram havia alguns meses. Eram vizinhos de porta e, um dia, ela batera para pedir açúcar. Ele a convidou para entrar e tomar um café. Naquele dia, ela vestia somente uma camiseta grande demais para ela que parecia um vestido, com uma estampa “I Love NY” escrito em um táxi amarelo. Quando passou por ele, coçou displicentemente a bunda, relevando a calcinha da Capricho preta.
      Ela vinha, dias sim, dias não. Nunca batia na porta e ele nunca a deixava trancada. Começou a comprar mais pó de café e sempre fazer o suficiente para duas pessoas. Ela nem se preocupava em comprar açúcar, um dia comprou geléia de uva e deixou, sem que ele percebesse na geladeira dele. Eles adoravam geléia de uva. Sempre que ia à lavanderia, já passava no banheiro do vizinho para levar as roupas dele junto, já separadas entre brancas e coloridas. Falaram uma única vez sobre essa rotina, quando perguntaram se podiam fazer ou se o outro se incomodava. Depois, esses gestos de educação e respeito viraram hábito.
      Sabiam os assuntos que não deviam ser falados, os quais sempre apareciam em suas conversas. Conheciam bem os limites implícitos naquela amizade, e dessa forma tudo ia bem. Até um dia em que Pedro, chegando de mais um longo dia entregando currículos pela cidade, depois de subir os cinco andares de escada carregando as sacolas do supermercado, passou diante da porta de sua vizinha. Estava fechada, como de costume. Usou o cotovelo para abrir o trinco de seu apartamento, quando teve uma idéia. Nunca pensou nisso desde que conheceu Evelyn, quase o mesmo tempo que morava nesse apartamento. Colocou as sacolas no chão da entrada e, tentando ser o mais sutil possível, forçou o trinco de sua vizinha. Estava trancado.
       Ficou um tempo olhando o trinco, sentindo, sem saber por que, um nó amargo na garganta. Com a cabeça baixa entrou em sua casa. Fechou a porta. Trancou.
      Em silêncio começou a guardar as compras. Colocou as cervejas ao lado da geléia. Manteiga na prateleira de cima. O vinho sobre a geladeira, e o pó de café no armário. Levou uma cerveja antiga, já gelada, para a sala e colocou no seu pequeno som um CD que comprara em um sebo do Mumford & Sons. Se soltou no sofá ouvindo os primeiros acordes, abriu a cerveja.
      Queria ouvir a porta sendo forçada. Ouvir alguém bater. Queria ouvir Evelyn vir, como sempre fazia, pedir alguma coisa. Tocou “Little Lion Man” e nada. Outra latinha se foi. E nada. Adormeceu ali mesmo. Nem se preocupou em limpar as lágrimas.
      Por algum motivo, os dias se seguiram agitados. Havia sido chamado para várias entrevistas de emprego. Saia cedo, voltava tarde. Encontrou alguns amigos da antiga empresa e saiam para beber com frequência.
      Decidiu estudar para algum concurso público. Quando não estava entregando currículo ou em entrevistas, ficava na biblioteca pública lendo.
      Depois de um tempo, foi contratado para ser balconista em um café próximo a sua casa. Trabalhava a noite, o que facilitou continuar estudando. As coisas iam bem. Conseguia economizar dinheiro. Terminar sua coleção de quadrinhos. Lia mais e era até incentivado pelos seus novos patrões a ver alguns filmes.
       Um dia, às duas horas da manha, quando estava chegando em casa do trabalho, viu que esquecera a porta destrancada. Ao entrar, sentiu um cheiro de queimado vindo da cozinha. Havia um pão que virou carvão jogado no lixinho da pia. No sofá estava Evelyn. Dormindo. Abraçada com uma almofada velha, vestindo nos pés as pantufas de tigre. A garrafa de vinho, pela metade, estava no chão sem sinal de nenhum copo. Pedro a observou dormindo. O vasto cabelo sobre o rosto. Um roupão amarelo, com uma marca de motel qualquer no peito. Usava uma calcinha fio dental vermelha rendada.
       Foi ao quarto, pegou seu edredom. Cobriu-a. Fechou o vinho, guardou na geladeira. Observou ela dormir por um tempo. Voltou ao quarto sorrindo.
       Evelyn o acordou pulando em sua cama, pela manhã.
- Nunca mais faça isso, ouviu! – gritou, abraçando-o com uma força.
- Desculpa.
- Não tem desculpa, seu idiota.
      Ficaram abraçados um tempo longo de mais.
- Senti sua falta. – disse por fim Pedro.
- Eu também.
- Quer um pão com manteiga? – Começou a se levantar da cama.
- Quero! – se sentou como índia na cama, segurando os calcanhares. – Bem torrado, e café.
- Ok... mais alguma coisa?
- Me acorde quando tudo estiver pronto.
      Pedro olhou-a se enfiar embaixo das cobertas, se aninhando com o edredom que trouxera com ela.
- Apaga a luz também. – pediu sem abrir os olhos.
- Você é muito abusada Evy.
      Ela mandou um beijinho e se virou de costas. Ele desligou a luz e fechou a porta.
      Depois estavam os dois na mesa de café, como sempre fizeram. Ela com seu café e açúcar, ele com mel. As torradas. Comendo em silencio.
- Desculpa pelo vinho. Eu estava sozinha por tempo demais esperando.
- Sem problemas. Eu comprei pra tomar com você mesmo.
- Alguma ocasião especial? – perguntou abocanhando um pão.
- Na época não. Mas acho que acabou sendo.
       Os dois sorriram.
- Por que trancou a porta? – Ela perguntou quando ele estava limpando a mesa.
- Sei lá. Acho que fui meio idiota.
- Não faça mais isso.
- Não farei.
- Escuta... tem uma coisa que faz tempo que eu quero te perguntar.
- Diga.
- Por que você me chama de Evy?
- É uma personagem de um quadrinho que eu gosto muito.
- Qual? Você me empresta?
- V de Vingança. Eu não tenho, virou meio raro.
      Ela ficou quieta, olhando pra ele. Depois perguntou.
- E a vida? Pelo que vi tem uns quadrinhos novos. Tem até uns filmes jogados por ai.
- Você andou mexendo nas minhas coisas?
- Sério que você está preocupado com isso?
      Ele ficou olhando para ela. Depois não aguentou e sorriu. Começou a contar sobre como estava sua vida. Ela conhecia o café onde ele estava trabalhando. Pediu alguns filmes emprestados para ver durante o dia. Ela falava do frio que estava fazendo a noite. Contou algumas histórias assustadoras que acontecem quando a cidade dorme. Riram de outras. Ele falou que tinha que estudar. Ela foi para casa.
      Aquela velha rotina voltou. Ele tinha as roupas limpas novamente. Acordavam no meio da manhã para tomarem café juntos. Hora ou outra, ela ia visitá-lo no trabalho, principalmente quando estava chovendo. Conversavam sobre alguns filmes.
      Um dia, olhando na internet viu seu nome na lista de aprovados em um concurso público. Iria ter que se mudar para outra cidade. A primeira coisa que passou na sua cabeça foi “Como vou falar isso pra Evelyn?”
      No outro café da manhã ficaram os dois calados. Pedro estava tão inerte em seus pensamentos que não reparou no silêncio e no rostinho triste de sua vizinha. Uma hora, ela decidiu e começou.
- Tenho que te falar uma coisa.
      Pedro olhou para ela. Respirou fundo.
- Eu também.
- Fala você primeiro.
- Não, pode falar.
      Ficaram quietos. Se olhando. Começaram a reparar que algo acontecia dentro dos dois. Mas não sabiam entender o que era.
- Eu vou ter que viajar. – Falou Evelyn. – Um cara me chamou para ir pra Espanha, acho que vou morar lá por uns anos. É a chance da minha vida. Trabalhar algum tempo e depois largar essa vida.
- Sério? Eu também vou viajar. Passei em um concurso público, vou me mudar pra outra cidade.
- Quer dizer que nós dois estamos dando certo?
      Ficaram se olhando. Não estavam felizes. Como imãs, se colaram em um abraço tão forte que soltou aquele nó na garganta.
- Obrigado. – dizia Evelyn. – Obrigado por tudo mesmo.
- Não tem que agradecer.
- Você é meu amigo, sabia?
- Você que é a minha.
      E ficaram abraçados. Ele não sabia onde ia morar para poder dar o endereço. Ela também não, só sabia que ia partir em poucos dias. Perceberam que talvez nunca mais se encontrariam. Que aqueles encontros matinais iriam ficar na lembrança, de um passado distante. De uma fase na vida que não ia voltar. Queriam abraçar o outro de forma que nunca mais se esquece. Gravar as impressões digitais na pele do amigo para que, quando se olhassem no espelho, lembrassem um do outro. As lágrimas vertiam com uma saudade antecedida.
      Meses depois, sentindo cheiro de café pelo apartamento de dois quartos, Pedro sentiu um aperto no peito, estava tocando “Little Lion Man” na rádio. Sentou sozinho na mesa e bebeu sozinho seu café com mel, sentindo um nó na garganta. Estava se acostumando com a nova cidade. Tinha mais cinemas e uma variedade de filmes passando. Sua biblioteca aumentara. Olhou no relógio, daqui a pouco iria ter que ir para o trabalho.
      Talvez ao mesmo tempo, em coincidências do destino que jamais saberemos, Evelyn terminara de ler V de Vingança. Era impossível não pensar em um mundo melhor. À tarde não tinha nada para fazer, e não conhecia seu vizinho. Sentiu falta de alguém a chamando de Evy. Pelo menos fazia sol quase sempre.

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Fernando Scaff Moura é

um dos promissores alunos da Oficina Literária de Isabel Furini, em Curitiba, e colaborador do Tiro de Letra.


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