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Contos & reflexões literárias

Uma menina de papel

 

Cecília Prada

       É um fato normal, as pessoas tomarem consciência das camadas de si próprias ao se proporem a autobiografia, as memórias. Acho. Preciso perguntar aos outros. Pelo menos uma personagem, Antonia, que encontrei dando voltas na pracinha do Jardim das Bandeiras, um dia, faz tempo, me fez verificar isso – quando eu lhe disse que sua vida daria um romance, ela colocou a pergunta fatídica: “Minha vida? Mas ela começa onde?” Nota incidental – a dela teria começado no dia em que, deixando a mãe na casa da beira da estrada, pulou a cerca com os irmãozinhos, e saiu correndo...                           

       A minha, quando começou a minha vida? (na cartilha, ao que parece...) A idéia da não- linearidade prevalece sempre – somos todos pedaços de nós mesmos, nossas vivências. Já dizia quem? Bachelard? Benjamin? Barthes? (três Bs). Começamos no momento exato em que tomamos consciência de nós – eu, quando me assumi como personagem? Talvez tenha vivido apenas como personagem. Talvez isso explique tudo – Tentação de me explicar assim. Não tenho culpa, vejam, de ter me descuidado de mim, de ter me deixado espoliar de carreiras e direitos, de não ter anotado no caderninho florido das meninas bem comportadas os anos de profissionalismo, para fins de aposentadoria. Se vim assim, desengoçada, meio instável, aos trancos e barrancos, é só por isso: sou uma personagem de ficção. Não sou real. A menina de papel. A menina que não era bem ela. Não era bem existente, sedimentada – as outras seriam?              

        Explico: Aos seis, sete anos, eu me vi Cartilha da Cecília feita por pai Luiz Prada – dizem os especialistas em história da educação que meu pai e meu tio Egídio foram os introdutores do Método Montessori no Brasil. Devo ter sido, portanto, a primeira criança alfabetizada por ele. Foi certamente um momento muito concreto de concretização, de identificação, aquele em que me vi reproduzida em desenho na capa da Cartilha, arrumando letrinhas na tipografia do meu tio Antonio, letras mágicas que se combinavam em sílabas, que se combinavam em palavras, em histórias, em livros.

       O mundo, existia para ser contado.

       No texto, tudo falava da Cecília. Tudo era da filha do professor; a boneca da Cecília, os amigos da Cecília, a família da Cecília, o cachorro da Cecília. Filtrava nos elementos daqueles dois livros a verdade de nossa vida familiar, cotidiana, literariamente transladada. Isso deve  me ter marcado extraordinariamente. Eu era uma personagem, meus avós, meu tio, meu cachorro, meus amigos, minha boneca. Éramos todos personagens. Era possível existir como personagem. Uma existência de permanência, e não de atropelamentos do todo-dia. A essência de nós. Devo me surpreender se hoje ainda me sinto presa dentro de mim? Enrolada na minha autobiografia? Parece que cai dentro do caldeirão de sopa  - de letrinhas – que eu tinha de tomar: Estarei presa dentro de um livro?   

       Ao deixar São Paulo e vir morar em Campinas, uma surpresa: encontrei entre meus novos amigos alguns que haviam sido também alfabetizados pelo livrinho escrito com tanto amor por meu pai – e aqui nesta cidade teve, parece, uma distribuição excepcional devido ao um colégio salesiano, de cujos padres meu pai era muito amigo.

        Eles me reconheceram: “Então, você é a Cecília da cartilha?”

       O grande escritor campineiro, Eustáquio Gomes, me descobriu aqui e escreveu um crônica deliciosa no “Correio Popular”: “Cecília rima com cartilha”.

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Extraido de: PRADA, Cecília. Entre o itinerário e o desejo. São Paulo: Scortecci, 2012.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

 

 

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