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Contos & reflexões literárias

Arqueologia

Cecília Prada

       Então, esta coisa em mim, agora me digo – que sempre,  sempre, atuante, devoradora, subterrânea. O Dom – enterrado. Trazido pela vida como fonte, tão grande, tão incomensurável, de prazer – que era dor, de não poder usufrui-lo, digo. Eu me quis fluência , eu me quis me entregando à narrativa, eu, narradora, muitos me disseram, confirmaram. E hoje, sou hoje o que?  Uma mulher cheia de gavetas, Vênus de gavetas cerradas (a de Salvador Dalí?), mulher de maldade, me acabando em consumição interior, me guardando eterna – eu, tão ameaçada de fragilidade, de corrupção.

       E essas mulheres todas em mim, multiplicadas no espelho, me olhando, pavorosas, pedindo libertação. Eu me achava, eu me achava, me dizia, pretensiosa, que era “confluência de mulheres várias, que vinham vindo na família” – e quem não gosta de histórias de famílias?

       Eu tinha as minhas mulheres tão guardadas dentro de mim, ciosa e tola, sua consciência, minhas mulheres meu múltiplo e uno, e fluindo. Esta consciência, te digo, exacerbada do Ser. Porque eu me protegia, acuada, de faca nos dentes, num canto. Me segurava, empacada, na minha resistência, fechando os olhos  - tanto, tanto, que hoje continuo empacada . Quando todos se foram – os que me perseguiam, e quem eram?

       Na casa fechada, vazia, estou, já sou fantasma de mim, de minhas histórias – que nunca escrevi de pura maldade.

       E agora só o que sei dizer, olhando estas histórias todas, que umas dentro das outras, enroladas como aquele sonho de minha mãe em que ela tinha de ir casar com meu pai, mas não podia, porque não conseguia calçar a meia, que estava enrolada e que não podia ser desenrolada porque estava dentro de outra, e depois esta outra dentro de outra e de outra e assim sem acabar...

       A história das famílias, de qualquer família, a história das enrolações e das meias umas dentro das outras, novelo em que estamos todos enfiados – mergulhamos ao acaso e voltamos com um fio frágil, colorido, cor de amaranto. Com um trapo rasgado cor de ânsia de vômito. Com um caracol negro, um papel de carta amassado, cinzas de Quarta-feira de Cinzas, pérolas falsas num fio arrebentado, os vestígios arqueológicos da família. Que tanto. Que a minha. Que seja dito.    

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Extraido de: PRADA, Cecília. Entre o itinerário e o desejo. São Paulo: Scortecci, 2012.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

 

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