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Crônica & reflexão literária

 

Crônica meio capenga

Cecília Prada

Notei que meus passos me perseguiam, pela calçada. Foi essa a primeira impressão que tive de que alguma coisa estava errada. Fora de lugar - querendo entrar em seu devido lugar? Quem vivesse diria. E isso era no tempo em que eu achava: que era só ser uma tarde fria, chuvosa e cor de cinza, para ... Mesmo porque, quem já viu uma tarde de chuva azul? Bastava chegar em casa um pouco molhada, sacudir a capa, os cabelos, a alma - e pronto. Começar a escrever. Que tudo seria resolvido.

     

        As coisas todas que se seguiram, os trambolhões, as emboscadas, as mil faces da angústia intermediária - tudo isso depois me mostraria: que nada era tão fácil assim (digo, no comum das coisas). Que havia embasbaquices. Engasgos e dispersões. E tudo isso, e mais a chuva, que era fininha e gostosa, a chuva, que eu me dizia, que eu não podia desperdiçar - am in the mood for love era uma canção do meu tempo de muito antigamente quando tudo era só o possível.

          E ai, já pegando um pocuo em si, já se calibrando, ela se perguntou se a solução não estaria justamente nisso, em acordar e entrar no apenas possível - que é o único tempo verbal necessário, ainda que nunca inventado gramaticalmente. Se a hipótese, se perguntou, não seria o único recurso adequado. Porque libertador. Somente um se, não um é.

     

           - Comece a escreve. Sem pensar. Escreva.

       A ponta aguda (pontiaguda!) da caneta ia fazendo seus pequenos signos no papel. Os hieróglifos do homem moderno. Os traços da nossa passagem. A posição - inclinada sobre o papel - o arranhar da caneta, a letra, elementos de familiaridade: e quando eu tinha vinte anos... Como era? O que eu qeria escrevia?

          - Histórias muito concretas.

          Com gente. Com ambientes ("Eu não sou romancista, sou um ambiente", dizia Lúcio Cardoso).

          - Há escritores de atmosfera. E há escritores de enredos. Uma escritora sem histórias, parecia, seu desespero. Impossível, isso. Parece que nunca ouvi uma história - e certamente não invento histórias. Essa a deficiência.

          - Você pode fazer o exercício de inventar histórias, exatamente disso é que você precisa.

           Agora posso responder à pergunta lá de cima: aos vinte anos eu queria escrever a história dos que não têm história, dos engolidos. Como fiz em um conto de estréia. Ponto Morto - um ponto em que fiquei morta e parada, também a vida toda, parece?

          Talvez seja melhor voltar àquele começo: "Notei que meus passos me perseguiam, pela calçada". E continuar: Mas não me apressei para chegar logo em casa. Até me demorei mais um pouco - como se meus passos, que me perseguiam, pudessem ser saudados como os de alguém ou algo muito íntimo, muito conhecido e querido, que tivesse voltado. De uma longa viagem. Um ritmo pontuando meu existir - um desdobramento esboçado.

            Um atestado, "sim você existe".

            Estou novamente em mim.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico

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