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Reflexão literária

                

                 DA MADRUGADA COMO

                    GÊNERO LITERÁRIO

 

                                                                                   Cecilia Prada

 

Amanheci amarrando madrugadas, seus contornos, suas sombras, suas linhas demarcadas - em mim.

         Você pode pensar o que é madrugada e confundir com coisas de arrebol, chilreio de pássaros, barulho despertando seus longes na avenida. Nada disso. A madrugada não nasce na linha do nascer do sol, se avermelhando de gozo - é nas minhas entranhas que ela nasce, se inventa, multifolha, a madrugada ‚ a ânsia de escrever, este desejo profundo transcendental que veio comigo ao mundo, que comigo dele se despedirá.

        O dia em que eu não quiser escrever, estarei morta.                                                                                                                         

         O Escritor é  o que tem este espaço em si -- o espaço anterior , do dia, da ação, da vida. O espaço em branco, o verdadeiro e único necessário, a página em branco do ser, à espreita dos sinais de vida: de manhãzinha, na cama, eu menina, que na véspera antes de dormir me contava histórias,  de manhãzinha despertava, hiperestesiada, à procura da vida. Que naquele tempo era feita de vozes de operários que passavam na rua, rumo ao trabalho. O ônibus que sacolejava , passava perto da minha janela, o cheiro do café que vinha da cozinha - tão sete horas, tão família; tão vida, e o colégio‚ perspectiva, suas lições -- se não fossem de matemática ou de desenho eu gostava.

         Escrever, a pena rangendo no papel, como hoje, agora ( o micro está na oficina), traçar meu testemunho no mundo - inserção, aqui estou.

 

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.

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