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Reflexão literária

De livros e de gente

Cecília Prada

De madrugada, acesa,

Apascento meus livros.

 

Frio, tempo nublado e ventoso. Enrolada em um cobertor, no sofá - mas não tenho lareira nem cão labrador aos pés, para completar o quadro. O quadro que um dia pintei para mim, para quando ficasse mais velha; e a perversão hoje se realiza, o cultivo destes meus camaradas de silêncio e reflexão, camaradas fiéis e constantes -que não me falham nunca. Eles me olham irônicos, uns equilibrando óculos no nariz empoeirado, do alto da última estante (instante?): não era isso o que você queria, um cômdo de paredes brancas, revestido estantes, estantes, e todos os livros do mundo, de todas as cores feitios tamanhos à tua disposição?...

       Uma biblioteca salva a custo das inundações da vida - enfim, o que sobrou dela. A maioria desses veteranos já atravessou até oceanos, já morou em tantas casas, no Brasi, na Itália, na Suiça, nos Estados Unidos... e agora, o que restou da tropa comigo à frente, aconchegados, apertados uns contra os outros estamos todos neste pequeno apartamento no Bosque, em Campinas - eles se animam, sinto um frêmito de vida, querem decerto que eu fale deles, que eu os retire do esquecimento, me dizem... enquanto lá fora o vento, aquele vento uivante da charneca inglesa de Emily Brönte, sacode os desvairados cabelos - de uma palmeira brasileira? Ora...

      Eu me lembro bem do Wuthering Heights ("O morro dos ventos uivantes") - eu o lia na cama, no longo período de repouso que fui obrigada a fazer quando esperava o Marcelo, em Washington. Mas na hora de ir para a maternidade, lembro bem, era de Walter Scott o livro que teve sua leitura interrompida, nunca retomada... Ivanhoe, lembrei

     E este, pequeno grande livro que descobri em um sebo... Ninguém, penso, deve ter escrito sobre ele. Sobrenome do autor: Malraux. Alguém conhece? Não, não se trata do André Malraux que foi romancista famoso e ministro da Cultura da França. - aliás, por que não são mais lidos seus livros? Mas este "Malraux" é outra, a mulher de André, Clara, de preciosos livros de memórias, sim, traduzido em português, alguns como Nossos vinte anos - no qual, nestas tardas horas, pesco esta citação: "Amar uma mulher, para um homem, é talvez querê-la parecida com a imagem que ele tem dela. Amar, para uma mulher, é querer que o homem escolhido pareça-se com a imagem que ele tem de si próprio, e, muitas vezes, mais simplesmente ainda, que ele seja o que é."

      Um coisa que se poderia discutir - se tívessemos com quem, é claro.

      Livros antigos - memórias românticas. Outra mulher, Anais Nin, uma aventureira da vida e da beleza, que desfrutou amores gloriosos com vários parceiros, a começar pelo incestuoso: com seu pai, um belo e louco pianista espanhol. Depois, com Henry Miller e outros. E outros. E que deixou uma grande obra, diários, romance, poesia - foi psicanalizada por Otto Rank, que parece ter sido também seu amante. Depois, foi ela própria psicanalista. Uma citação vai aqui, uma só, preciosa: "A introspecção é um monstro devorador. É preciso alimentá-lo com abundante materia, muitas experiências, muitas pessoas,muitos lugares, muitos amores, muitas criações, e então ele cessa de se alimentar de nós."

     E por hoje, chega de romantismos e ventos uivantes. Ou antes, para finalizar só mais uma pequena citação: "A escrita é o mataborrão do desejo do desejo". O autor? Ora, é mais uma autora: Cecília Prada.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.