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Conto & reflexão literária

 

Demônios insones

na madrugada

Cecília Prada

Ter demônios tão tardiamente, ora. Mais: gostar deles, redespertos, na manhã inesperada. Saudá-los como a velhos conhecidos, amigos - o diabinho da inquietação na juventude, demon, espírito, eis está de volta, finalmente: e eu não tenho medo dele. Me ressuscito em chamas: escrevo. Estou cara-a-cara comigo, inevitável este confronto, sei agora quanto o adiei, quantas coisas interpus entre nós dois no percurso longo da vivência, os trancos e barrancos de nossa conversa descontinuada - pelos percalços e contingências, pó de anos, entulho acumulado, enfim: circunstâncias.

          Eu sabia que este momento chegaria - e  que novidade, não o desejei sempre? diz a verdade, Cecília, desde aquele momento não-lembrado mas acontecido com certeza, em que fizeste uma escolha - ou, quem sabe, já vim "escolhida" de outras vivências? - pois aos catorze anos eu dizia "eu queria viver em uma casa de paredes caiadas, com estantes enormes cheias de livros, escrevendo." E assim estás agora, te restaram - e ainda bem - algumas paredes brancas, as estantes de livros, tua essência, escritora, tua vivência.

                          Teu demônio das madrugadas.

                                                   .

Se agente não perder o apoio de coisas concretas (pontos, fios...) não se perderá - vê, no teu caos há pequenas marcas, pontos de luz, correntezas de ar para te guiarem, indícios, algas marítimas, gaivotas, se forem a até: escolhos - a pedra no meio do caminho. É só avançar, pelas trevas, às palpadelas, mas de olhos, sentidos, todos alertas, espevitados como quando tinhas doze anos, narinas frementes, à procura da vida.

                          Quem procura, acha.

Então, ser escritor é isso mesmo: o que percebe todas as espinhas e espinhos, os carocinhos, as pintinhas e os espirros, da realidade - e sabe descrevê-los. O homem comum só tem a "realidade" que lhe foi dada, ou imposta - não se preocupa em pensá-la, em interrogá-la. O escritor é o guia, aquele que avisa, "cuidado, não vá tropeçar na pedra" - embora viva ele próprio, tropeçando.

                          Essa, a nossa missão.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.

 

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