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Contos & reflexões literárias

 

Domingo de chuva

 

Cecília Prada

 

De madrugada,  acesa,

Apascento meus livros.

 

       Auspicioso, envolto em brumas literárias, este dia, para realizar coisa nunca  - quase nunca – por mim empreendida, em longa carreira literária, não muito exposta mas que me tem ocupado por mais de 50 anos: o desejo de escrever crônicas. Se, aos trancos e barrancos e em intermitências cujas causas não me apetece aprofundar e expor neste momento, tenho sido ficcionista, contista principalmente, e conquistado alguns prêmios e até leitores no Brasil e no exterior, a crônica, a vontade de me entregar a esse gênero breve, conversa descompromissada ao pé do fogo tribal ou de lareira cúmplice... bem, essa ainda anda insatisfeita dentro de mim, agitando mil cabecinhas espevitadas – uma réstea de fervor juvenil no que deveria ser a grisonância uniforme dos dias acumulados?

       Falta-me o elemento essencial, a lareira cúmplice – impossível neste calor tropical, úmido e pegajoso em que estamos há meses aprisionados. E o cachorro terra-nova – ou seria labrador? –  estendido aos pés, e os amigos chegando para jogar baralho à noitinha bebericando um sóbrio uísque em alguma casa da serra...

       Condenou-me o destino ao calor, à falta do convívio amical, à burrice desoladora de um jogo de paciência, esse atestado universal de solidão.

       Paciência, mesmo, devo ter. E procurar aproveitar esta frágil corda literária em que vou me equilibrando para dizer “aí, ó, você”, buscando a companhia e o interesse de algum leitor também solitário. A crônica, é o crochê literário que faço. O jogado, o mesclado, o quero-ver. O deixa-ver. Quando ficamos mais velhos, é só ligar a memória nas coisas, e deixar que ela vá indo, mula velha em estrada conhecida, rumo de casa – a infância, a mocidade. É o natural da vida, e da narração, ou, para alguns como eu, poderá ser isso o tanto esperado, o enfim: isto é, a solução literária, o deixar acontecer. Posso retomar, com estas crônicas, o fio da minha fluência que começou a ser estendido nos tempos da Escola de Jornalismo, numas crônicas babacas de menina daquele tempo que começava a ver o mundo – e a escrever, sim, como todos os adolescentes, furiosamente sobre ele. Em um coquetel - petulante criatura! – virou-se para Edmar Morel, um grande jornalista que naquele tempo era, parece-me, diretor de redação de um dos Diários, e lançou: “Eu quero escrever crônicas!”. (Ele nem ouviu).

       A crônica é gostosa e se derramando. É meio se permitindo. O cronista, é o cara que se permite. Sim. Não tem que denunciar coisas, consertá-las, elocubrar, despertar multidões. Crônica não é coisa de multidão. E muito menos de acadêmicos, ou de ideólogos de lábios finos e imaginação escassa. É coisa de escolha, de venha tomar um café comigo, de papo gostoso. Não de pensamento muito. Só de algumas pensamentações, leves.

       É coisa de avó, de velho amigo, de nós todos com nossas gostosuras, em um momento de cansaço em que não precisamos mais salvar o mundo. Mesmo porque de duas uma: ou ele já foi salvo, ou não tem salvação.  

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Extraido de: PRADA, Cecília. Entre o intinerário e o desejo. São Paulo: Scortecci, 2012.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

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