Volta para a capa
Contos & reflexões literárias

 

Feriadão

Cecília Prada

       Se eu conseguisse criar um conto inteiro, cabeça tronco membros dentes e risadas, ficaria menos entediada neste dia de longo feriadão que paira sobre a minha cabeça desprotegida . “Literatura é saúde”, disse um cara chamado Deleuze – mas é mais do que isso: é aquela última esperança, o galhinho raquítico do arbustro  que nos engancha diante do abismo faminto que escancara já sua goela, salivando para nos engolir – mesmo assim, de pijama e de banho tomado, na precariedade da manhã?

       A gente afinal escreve é para fazer companhia a sí próprio. Para ler o conto ou o romance que se quer ler – ou viver. Para encher de vozes coloridas os rincões empoeirados do nosso castelo interior, arejar seus salões, chamar músicos e jograis para um grande festival em que desfilaremos fantasiados de reis e rainhas, prelados (pelados), guerreiros, cortesãs (de bobo da corte?) – enfim, luxo sofisticado de veludos, sedas e brocados suaves ao tacto, esplendorosos de visão, manjares de requinte comprovado, eflúvios de harpas dedilhadas por desocupados anjos transexuais.

       Consulto arquivos de idéias de contos, contos cristalizados, em calda fina, em salmoura até, fragmentos de contos possíveis, contos embalsamados, opa! Que acervo! É uma surpresa boa, posso pegar o que quiser para continuar a trabalhar – o do japonês caolho? O da moça que perdeu  o vestido de noiva? O da freira, dizem, que transou com o diabo... sim? (para ficar só nos divertidos). A escolha é difícil e ...

       Ops! Tocaram a campainha? Quem...surpresa!

       Ora, pois é ninguém menos do que Bruce Lee em pessoa que vem partilhar o tédio enfarruscado do meu feriado. Bem-vindo!

      Não. Não o fantasma do famoso mestre das lutas marciais, não pensem, não. Algo menor, menos fortão, mais gracioso e peludo, que atende por esse nome, e que entra fuçando a casa toda, batizando a perna do sofá, roendo minha havaiana predileta: meu netinho-cão (criação do meu filho), um shi-tsu  cor-de-cacau mesclado, de cinco meses, que veio – de mochilinha preparada e tudo – passar dois dias com a vó, coisa fofa!, enquanto o resto da família vai passear, será que você podia?

       É claro que eu podia. Para isso são feitas as avós. E os feriadões.

        E hoje não escrevo mais nada – estou de férias.

__________

Extraido de: PRADA, Cecília. Entre o intinerário e o desejo. São Paulo: Scortecci, 2012.

__________

Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

 

- Veja outros contos de Cecíla Prada