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Crônica & Reflexão Literária

 

INVENTÁRIO: a sombra da escrita

Cecília Prada

Estou sentada aqui, na margem deste caderno - não está me vendo? Essa senhora estafada, língua de fora, veio correndo, coitada, pelos prados (e desfiladeiros) literários. Ela se deixa cair à margem da estrada.

       Desacorçoada (que palavra antiga, de avô, com gosto de cará, caroço e batata-doce).

       A mão em palma no sobrolho, procuro divisar o que vim reunindo nestas páginas, entre suspiros, miçangas, grades, arrebóis e sonhos - bem vividos ou desfeitos. O material que escolhi dentre as pilhas de pastas, cadernos, arquivos de computador - e de mim, minhas histórias, pedaços.

       O que tenho nas gavetas da escrivaninha de memória e do Ser, mais de mil páginas assombradas que farão dentro de alguns anos o desespero das arrumadeiras. Ou o júbilo de algum descendente interessado em escoimar lembranças de fazer rabiscos.

       - Deixa eu perguntar: de-sa-cor-ço-a-do (risos) por quê?

       - Ham. Quanto mais se escreve, mais se pode ver o que não se escreveu. A sombra da escrita, os fantasmas que se esgueiram pelos vãos da escada, desvãos, dejetos, resíduos que depois...

       - Direto aos fatos. Não se embrome em palavras.

       - A intensidade. Não só fatos. Não se trata de relatar mais fatos. Mas sim de empapá-los com seu verdadeiro molho. Digo, por exemplo, quero dizer: da condição da mulher da minha geração extrair um detalhe que me faz pensar - a absoluta falta de exemplos de mulheres profissionais bem sucedidas, na minha infância.

       Visito, na penumbra da memória, cenas da infância, lugares públicos, eventos - detecto neles, com a mesma estranheza de outros tempos, que eram cenas de convívio entre homens, só. Visitem-se as fotos que todas as famílias guardam, em albúns poeirentos... minha cidade, São Paulo, que já era "o maior centro industrial da América do Sul" naqueles anos 1940, como se assemelhava então a esses ambientes urbanos de países ainda bem atrasados, muçulmanos, onde a ausência da mulher está ostensivamente exposta - ainda.

       Lá, eles ainda decapitam, apedrejam, enforcam mulheres, enquanto, entornando canecões de cerveja, governantas de outros países sacodem os ombros dizendo "não temos nada a ver com isso, cada povo tem seus costumes, é uma questão de soberania nacional"...

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Extaído do livro Entre o intinerário e o desejo, que será lançado na 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em agosto de 2012 pela Scortecci Editora

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico

      

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