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Contos & reflexões literárias

 

O trenzinho da memória

no país do futuro

Cecília Prada

     Escrever memórias é sequinho e em um trilho, Ou antes, nos trilhos, trenzinho puxando vagões, corrediço e normal. Minhas memórias são o mateiral apenas, de minha escrita descarrilada. Ou pelo menos, sujeita a descarrilamento – com a graça-de-Deus, porque assim deve ser qualquer escrita literária que se preze. Trem caprichoso, metamórfico, polimórico, bêbado nos trilhos, se sacolejando garrafa na mão, se carnavalizando, enveredando por caminhos só seus e dando banana ao memorialista.

     Um destes dias ao passar ao meio-dia pela Avenida Paulista, encontrei de repente, numa surpresa, minha xícara de chá da infância. Minha Madeleine paulistana – a ponta da Memória, o som da recordação: a sirene da GAZETA. Pessoas iam e vinham, esvaziavam-se andares e secretárias corriam para os restaurantes de kilo, atoleimava-se minha Cidade em faminta agitação. Mas eu, parada na calçada, saboreava pedaços esgarçados de 50 anos atrás. Entrava em mim uma menina dos anos 40, dos anos da Guerra. E o som que eu ouvia não era diluído, abrandado, não se perdia no meio da manhã da Avenida. Era o mesmo, sim, mas rouco, sombrio, um uivo poderoso varando  o silêncio absoluto – em noite de blackout do tempo da Guerra.

     Reunidos em casa de minha avó nos Campos Elíseos, em torno da mesa grande da sala de jantar a qual uma tímida lâmpada de 40 velas pingava, autorizada a custo, assumíamos cara de solenidade. Sabíamos que não era verdade, só um exercício. Mas bem poderia ser. Não diziam que em seis horas de vô, apenas, os aviões alemães poderiam atingir Natal?

     De todo jeito, onde mesmo ficava Natal? – Cidade longínqua e calorenta, devia ser como tudo o que ficava lá pelo Norte.

     A campainha da porta tocava súbita, causando calafrios – era a voluntária da Defesa Civil, de farda azul-marinho, quepe enviesado, levando mão à pala num arremedo de continência: desculpassem, mas a cortina – negra e espessa, feita expressamente para a ocasião – não estava bem fechada, uma réstia rebelde de luz aparecia. Era um perigo, podia atrair os aviões inimigos. Foi logo substituída por castiçal e vela, coisa que muito me agradava.

     Mas o grande perigo, de verdade, era se a guerra de repente acabasse, antes de eu ter idade para me alistar, moça, magra e elegante, de batom vermelho muito vivo e de quepe enviesado, na Defesa Civil – traidora e má, a Guerra não esperou por mim, acabou.    

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Extraido de: PRADA, Cecília. Entre o itinerário e o desejo. São Paulo: Scortecci, 2012.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

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