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Conto

RIFANDO MEU UMBIGO

 

                                                                                        Cecília  Prada

 

Decididamente: de tanto contemplá-lo, enjoei. Ele já me disse coisas demais. Que eu, sabida, transformei em palavras - e ganhei com elas. Nos últimos anos, então, tendo sido forçada a guardar território emprestado e precário (o porãozinho que restou de meu castelo avoengo), sem ter muita companhia, não tive outro remédio senão concentrar-me nessa parte útil, sem dúvida, mas pouco imaginativa, do meu ser. E ouvi-lo de noite e de dia/ padre-nosso ave-maria.

               E o que extraí dele...Ciscos e mariscos, memórias e lorotas, solilóquios e circunlóquios (principalmente estes), coisas de somenos e coisas só demais - enquanto o mundo vasto mundo continuava a rolar e a roncar cada vez mais alto, lá fora.

              Mas agora enjoei. Deve haver mais coisas  para se fazer, ó Senhor, do que passar a vida toda e mais três meses a contemplar um mero buraquinho insosso que fizeram quando nascemos, para nos marcar – para que não nos perdêssemos? Para que nos reconhecêssemos como filhos de Adão e Eva?

              Do umbilical domínio já saindo, mais inteligente me pergunto: como podemos descender desse senhor e dessa senhora, se justamente eles é que não tinham umbigo?...

              Onde, em que altura da criação, de qual genitor afinal herdamos esta marca de nosso ser vivente? Este buraquinho, este nó que passamos eternidades a contemplar, para  ver se com ele aprendemos algum segredo de nós-mesmos. Ou do universo.

 

              A história não está bem contada. Não. Essa história, a da nossa criação, não está nada contada, ainda. Só nos resta inventá-la.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico

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