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Contos

Trilhas da madrugada

Cecília Prada

       Três horas da madrugada era coisa que nem existia, de tão linda. Só numa valsa. Três horas da madru-ga-a-da... que minha mãe tocava naquele piano convencido, alemão, com nome de saponáceo, Sponagel, que ficava guardado na sala de visitas que era outra coisa inexistente de tão linda e tão guardada, coisas só-de-vez-em-quando, esse aprendizado, havia as coisas todo-dia e as coisas só-vez-em-quando - que eram as que eu queria, e não me deixavam. As teclas brilhantes do alemãozinho antipático e convencido, que eu não podia tocar, só minha mãe, "só quando você aprender a tocar", e ela tocava, cabeça inclinada para o lado, as horas da madrugada - que era coisa com gosto proibido, porque horas da madrugada eram coisas de homem, só os homens saíam de noite, sozinhos, de madrugada, eram senhores da noite e dos mistérios, a rua, era dos homens, as mulheres rezavam iam para a cama dormiam e acordavam para fazer as tarefas da casa e só quando acabavam o trabalho é que podiam também ter seu segredo: abrir a sala de visitas, abrir a tampa do piano esponagado, com cuidado retirar o feltro bordado que cobria as teclas, escolher a partitura, as três horas da madrugada perdiam seu mistério, não eram coisa escura de homens, eram também coisa de mulher, ali, permitidas, parecia, me diziam "há gente que gosta do escuro e do vazio das ruas da madrugada, gente que não tem medo da noite (e o apito do guarda noturno, se enfiando nos ossos da gente, parecia)" - aquelas mulheres entrevistas em um cartaz de cinema de um filme que nunca se veria, que alguma tia contava, a meio, aludia, a atriz francesa, Michele Morgan, no Cais de sombras... elegante, olhar provocante, encostada em um poste e fumando, uma perna levantada e um pedaço de perna aparecendo na fenda da saia, ah!

       Os tentadores mistérios do mundo exterior. Em cada partitura, em cada valsa, um mistério. Tardes em Lindoya - onde seria esse lugar tão longe, Lindoya com y, que de tão lindo tinha merecido música também, ah! Mas havia as coisas do medo, também, Os heróis do túnel - a capa da partitura já dava medo, eu não gostava de olhar, o túnel feio, escuro, de boca escancarada para comer gente, e o soldadinho na frente dele, baioneta empunhada, de cara que era um grito de agonia só... Mãe, o que é isso?, é do tempo da Revolução, uma batalha que houve no Túnel da Mantiqueira, ficou famosa, na divisa de Minas, os mineiros e os getulistas mataram os paulistas. Eu nem pegava na partitura, de tanto medo, era coisa muito feia, eu era paulista e eles podiam vir me matar. Nunca me lembrei de uma só nota dessa música.

       São Paulo no final dos anos 30 - mergulhado ainda na Revolução. No ressentimento, falava-se em sussurros, parecia - frases persistentes nas conversas de adultos, São Paulo foi traído, mandaram os moços para as trincheiras, os políticos fizeram acordo. A revolução era uma ferida aberta, nas famílias, relíquias, um capacete dependurado na parede na casa da avó materna, uma bandeira enrolada numa gaveta, amortalhada, o que está mexendo aí, menina? - a bandeira paulista de treze listas, que o Getúlio mandara queimar.

       Tempo de comitês, de senhoras de tailleur e chapéu de feltro enterrado na cabeça, discursos que se inflamavam enquanto eu, a única criança levada a tais lugares - quais eram esses lugares? um deles, de certeza, era o Centro do Professorado Paulista - arregalava um olhão, não entendia nada, sabia só que devia ser aquela coisa de muito medo, coisa feia. Os herós do túnel, os soldadinho de baioneta, o medo quando o trem de Bragantina que soltava brasa por tudo quanto é lado entrava no túnel - então, agora, vinham os mineiros, vinham os cariocas, vinha o Getúlio matar todos os paulistas do trem?

       O medo: era cinzento, cor de fumaça, cor de neblina, era uma coisa visguenta vindo, colando nos ossos da gente.

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Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

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