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Conto & reflexão literária

 

Memórias retardadas

Cecília Prada

"... registrar o passado não é falar de si, é falar dos que

particpiaram de uma certa ordem de interesses e de

visão de mundo, no momento do tempo em que se

deseja evocar".

Antonio Candido

 

       Amigos, colegas de tão longa data e vida que se esvai, nos últimos contornos e figurações - para nós todos. Que estamos agora sentados no último degrau, penúltimo que seja, brincando de contar as pedrinhas - toscas, reluzentes algumas? - de nossa permanência. Repórteres, jornalistas fomos, empreendemos: ver o mundo, descrevê-lo, entendê-lo, se possível - tola e romântica pretensão.

       Que reste-t-il de nous amours, de ces beaux jours...? dizia a música de Edith Piaf. Os netos, os álbuns de família, a pilhas de LPs que não se resolve jogar fora, os livros que se desfazem ao tato - terão uma rosa murcha entre as páginas? Somos nós, agora, os anciãos da tribo - nossa fragilidade, o andar que se faz mais lento, as juntas que doem no amanhecer, muito embora o reumatologista diga que com as modernas drogas dentro de seis meses... estaremos curados. Ou mortos?

       A memória é nossa injunção única - nela vivemos, e nos sentimos obrigados a contar. Vivemos todas as nossas circunstâncias, parece, só para isso? Contá-las a quem, generoso, ou curioso, que nos preste ouvidos - para que assim, o que fala e o que escuta, perpetuemos a unidade mais remota e essencial da humanidade, aquela voz tribal de em torno da fogueira, que não esmorece, repassa, enriquece com as gerações múltiplas, as gradações nuances embalos lamentos e cânticos triunfais  - que devemos, que somos nós, que aqui também viemos hoje ofertar na pira imortal preservada?

       Eu - tenho de dizer e sublinhar-me, na identidade de ponto-aqui. Definir-me, no entre-parênstesis, como vivendo somente para as manhã tenras, e de inverno, quando meu pensamento pode vaguear, ir buscar-me em meu ponto inicial, essencial. Hoje quero me lembrar do ano em que entrei no curso de jornalismo na Casper Líbero - em que saí do óvulo-casulo da família, despertei aos 19 anos de um obscuro espaço trevoso chamado adolescência na metrópole do pós-guerra, em fremente expansão, econômica, cultural.

       Mais de meio século passado, e eu na outra ponta do fio estendido. A invocação que fiz agora há pouco foi a eles, aos colegas daquele tempo, ainda sobrevivos, até muitos, em atividade. Eles me dão a "continuidade" - o SER.

       Toda geração tem a vontade de se definir, criar um apelido coletivo, caracterizar-se entre tantas - em uma dessas comemorações de tantos e tantos anos de formatura que se promovem às vezes, alguém disse o chavão inevitável "fomos a última geração romântia" - e ninguém, a não ser eu, ficou ruborizado, ao que parece. Talvez tenham acreditado e repetido, essa banalidade. (É preciso cavoucar mais fundo - se temos, realmente, tanta necessidades de definições).

       A "geração dos anos-dourados" - assim nos têm também definido, os outros. Ou a Rede Globo. E nós, semi-perplexos nos indagamos se realmente assim fomos - se nosso ímpeto de viver, de experimentar tudo, de sair para o mundo, não foi igual ao de todos os moços, de todas as gerações. Se nos sentíamos uns privilegiados - se acreditávamos, enfim, na construção de um novo mundo, nos pactos da ONU, na "revolução das expectativas nascentes", dos povos terceiro-mundistas, na paz universal.

       Ou se apenas acreditava, cada um de nós, na sua felicidade individual. A mim me parece que fomos a geração fusquinha - empolgados todos com Juscelino. E com o estabelecimento da Volkswagem no Brasil, com a possibilidade da classe média brasileira ter, somente então e com tanto atraso, acesso aos bens comuns, sua casa, seu carrinho - e havíamos passado por aquele período do início dos anos 50, quando só quem tinha um carrão importado era mesmo aquele nosso colega filhinho de papai. E nós todos que dependíamos dos bondes (sua lentidão, sua impontualidade) dos ônibus de trajeto limitado - todos os caminhos levavam ao centro de São Paulo, quem tinha de ir a um bairro tinha forçosamente de tomar uma condução para o centro. De lá, outra linha para o bairro desejado - desconforto imenso.

       E falta de telefones, estão lembrados? Nem orelhões, não, isso foi só mais tarde. Eram bens de família as parcas linhas telefônicas da Grande Cidade - e então, era a boa vontade da vizinha, as linhas que se adquiriam às escondidas no câmbio negro da própria Telefônica, e aquele armazém da esquina onde se entrava escondendo a humilhação perante o português de bigodes lustrosos, "dá licença, seu Joaquim, eu queria só usar o telefone, é rápido, não demoro"... E havia a fila dos inscritos na Telefônica, que de vez em quando publicavam nota nos jornais dizendo que haviam soprado as velinhas - até 10 - do bolo comemorativo dos anos de inútil ins crição.

       E nós mulhes, então, que somente no início dos anos 50 começamos a ter mais acesso aos cursos universitários. Mas na sede do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito de São Francisco, as estudantes não podiam entrar....

       Voltaremos a falar de nós, amigos, até breve.

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Extraído de: PRADA, Cecília. Entre o intinerário e o desejo. São Paulo: Scortecci, 2012.

 

Cecília Prada

Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem seis livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP).  

    

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