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Contos

                                        

                                   O Animo do Herói

                                                                                                                                                                                                             Fernando Scaff

              Da noite só retirou o ânimo. Ânimo que não existia mais no reino. Havia, em uma noite em claro, se perguntando por que ninguém olhava mais o horizonte e, ao acordar, se sentiu animado. Aquele mesmo ânimo das lendas, dos heróis e que não existia mais no reino.

         Vestindo sua armadura brilhante. Ombreiras, caneleiras, peitoral, elmo, escudo, manoplas, cota de malha, manto e uma espada afiada, forjada em uma época onde seu uso certo seria em uma parede, sendo polida semanalmente, mas feita por um ferreiro que sabia o que estava fazendo. Decidiu seguir em uma jornada pelo mundo.

              Estava a sua frente, além da fantasmagórica divisa fantasma que separava sua pequena aldeia interiorana do desconhecido, o mundo. Não havia como não sentir medo. Ia dormir com seus pais falando dos perigos do alem fronteira. As pessoas falavam dos perigos do alem fronteira. Ele imaginava os perigos do alem fronteira. Mas nunca os vira.

            Na verdade, a fronteira era o limite até onde as pessoas se davam ao trabalho de cortar a grama.  Assim, ao lado da estrada de terra, a grama estava dividida em baixa e alta. Nessa linha imaginaria estava nosso herói, encarando o chão mais a sua frente, tateando sua espada na bainha. Sua respiração ofegante só foi rompida por um gemidinho gutural, dado no momento em que colocou o pé do outro lado da linha imaginária e começou a andar sem olhar para trás.

           Pouco tempo depois eles começaram a aparecer. Bandidos, trajando ternos de linho e colarinho branco. Mantas rasgadas e unhas sujas. Olhos por trás de vidros ou remelas. Com uniformes ou sem camisa. Sapatos de couro e chinelos. Em uma mistura complexa de estilos, saindo de traz das arvores, pedras, parecendo surgir do chão, uma legião de vis começou a se formar. E das mãos com as palmas para cima, começaram a aparecer facas pontudas, ou diziam ter facas pontudas nos bolsos. Ou armas de grosso impacto. Ou contratos a serem assinados. Ou discursos prontos. Aglomeravam apontando, acusando, ameaçando e pedindo. Não havia como encarar o horizonte. Com isso, o Pacto Sagrado de não tocar, implícito pela lei maior, imposta por soberanos em um tempo esquecido, onde as lendas dizem que o vento sussurrou de arvore em arvore, de grão de terra a grão de areia até o ouvindo dos homens, chamado de Bom Senso, se perdeu. E a lei do Bom Senso sendo rompida, as vísceras do vilão mais próximo também o foi.

             A carnificina começou com três morrendo a cada passo. Golpes de espada precisos tombavam vilões no caminho, servindo de pedra para as botas de ferro do herói. Agora, para cada passo, dois golpes eram dados, equilibrados sobre as poças de sangue e membros que se formava. A pilha de corpos ia ficando para trás. 

          Seus braços estavam amortecidos, mas o herói permanecia a encarando os olhos que não paravam de vir como uma caravana de perdidos no deserto ao ver um oásis. Com seus mantras de “Olha a promoção” “Ou passa grana ou te passo” “Gasolina” “Só aqui” “50% de desconto” “obrigatório” “To armado” “Deus precisa de sua ajuda” “imposto” “O fim dos tempos” “Te quebro a cara” “Só pra uma coxinha”. Um a um engoliam sangue e aço se tornando pedras no caminho.

          Mas os corpos não se iam sem motivo. Era um golpe, e levaram seu escudo. Seis ao chão, e não tinha mais suas botas. Avançava rapidamente, e não possuía mais as manoplas. Virava-se para golpear um que sobrevivera, e seu peitoral sumira. Pulava por sobre alguns corpos para o meio de uma nova horda e sua cota de malha tilintava ao longe. Forçava tirar a espada de dois corpos perfurados e já estava sem as ombreiras. Quando girou um golpe triunfante suas caneleiras se foram. Depois da curva já estava sem o elmo. No fim, estava sem manto. Simplesmente nu. E como a espada havia se perdido em algum momento, matava, a próprio punho, aqueles que continuavam a insistir em seu caminho.

           Ao longe se podia ver a gloriosa cidade, chamada de capital por ser lá que as coisas aconteciam. Finalmente teria descanso de sua jornada. Seu animo, minado pelo longo caminho e matança se revigorou sabendo que descansaria. Mas não foi bem assim.

          Sua pequena cidade era calma, então, se fazia mais o uso da armadura do que da espada. Agora adentrava pelos portões de aço, cravados em uma gigantesca muralha de pedra, tendo o corpo banhando em pegajoso sangue e as mãos nuas esfoladas de golpes, e, pela primeira vez, entrar na capital. Ali, com todo seu corpo a mostra recebia palmas e elogios.

           Nas ruas outros vilões que não paravam de chegar e caiam, a chutes e socos, no caminho do herói. Nas calçadas, as pessoas admiravam aquele corpo másculo e viril, banhado em sangue tentando andar e chegar a algum lugar.

           Palmas. Comentários de como a crueldade humana conseguira despir as pessoas a olhos vistos. Que a violência tornava todos iguais e nos traziam, em uma metáfora quase irônica, ao exato ponto de nosso nascimento. Não nus por completo, mas envolto em vísceras e sangue em um mundo materno que, em momento algum, mentiu a forma como tudo deveria ser. Aplausos, murmúrios, comentários.

           Enquanto o herói, passo a passo, bandido a bandido, avançava ofegante, cansado, finalmente conseguindo achar as forças que precisava para continuar, pois, estava chegando, sim, a algum lugar e acreditava que seu esforço estava valendo a pena, já que, finalmente, avistara seu destino. Os bandidos passavam pelas costas dos que aplaudiam e levavam suas carteiras. Encostavam facas em seus pescoços e levavam suas jaquetas. Era um ritmo organizado e maquinal, passavam um após outro, trocando de vitima e levando, sem qualquer tipo de reação, todas as posses que achavam interessantes. Dos sapatos aos chapéus. Das malas ao dinheiro. Dos brinquedos aos livros.

             Haviam aqueles que, sentados para comer em mesinhas na calçada ou mesmo dentro dos lugares, tinham de levantar, em meio a qualquer conversa, e dar aos vilões suas coisas, por mais que já não tivessem nada.

            Não era raro um que, sem mais nada a dar, recebesse uma facada final, diante de todos, e se somava a alguns corpos, tanto dos bandidos largados pelo herói, como por outras vitimas que, também sem mais o que dar, davam a vida. Em seus lugares, assumiam outros a aplaudir, entravam na fila dos batedores de carteiras, moedas, colares, roupas e afins.

            Mas os corpos nos chão não estavam em paz. Apareciam homens, todo de branco, ou com colarinhos brancos, ou com olhos de vidro, e extraíam os órgãos dos mortos, colocando-os em potes de plástico brancos. Tudo de maneira organizada. Existiam aqueles que retiravam o coração, outros o pulmão. Os rins. Vinham, com suas facas, já enferrujadas com o sangue, e mutilavam os corpos para levar seu órgão.

            Ninguém estava a salvo. Os bandidos colocavam a carteira no bolso de traz, e já eram levadas por outros bandidos. Os homens de branco levando órgãos, tinham seus potes, suas carteiras, até suas facas sendo levadas. Mas se levantavam para pegar outra de outros. Era um balé sangrento e oleoso, mas funcionava magistralmente bem.

          Os que tinham as mãos livres, aplaudiam o homem nu ensangüentado.

          Na rua, próximo à maior construção da capital, o herói avançava a socos e pontapés. Na fachada deste lugar estava escrito, de maneira afetiva e animada, “Banco”, e na porta havia uma fila, organizada com uma fronteira fantasmagórica e mítica como a da pequena cidade. Era uma faixa amarela no chão, e todos ficavam entre elas. Homens, que demoravam a pintar mais sequências nas linhas amarelas, pois tinham suas tintas e pinceis roubados, tentavam ir aumentando o comprimento na medida em que as pessoas iam chegando. O herói parou, pingando sangue, nu e ofegante, atrás do ultimo, e outros últimos surgiram atrás dele, e as linhas foram feitas ao lado dele. E ali ele ficou.

           E ficou.

           Seus passos, cada vez mais curtos, o exauriu, e a cada passo perdia um dia. A cada ano, mais próximo ficava da entrada. A cada década, mais descobria o quão grande era aquela construção e o quão grande era suas filas. E seu animo ficou no passos passados.

           Ao fim de um século avistou o destino da fila. A Fila do Caixa. Ao final de um milênio ele era o próximo a ser chamado e, ao final de uma era, ele se dirigiu ao caixa. Estava velho. Estava sem animo. Mas foi recebido com um sorriso plástico com olhos desinteressados. Com uma frase pronta que o fez dizer quem era e de onde vinha. E ele disse. E descobriu que, agora, havia um Banco em sua pequena cidade. E que ele não precisava ir mais para aquele lugar, pois tudo deveria acontecer lá, no Banco de sua cidade, pela proximidade. Ele olhou o sorriso plástico e os olhos desinteressados. Olhou suas mãos enrugadas e o sangue seco em seu corpo. E não sentiu animo.

         Pela janela, construída sobre as outras construções da cidade, ele viu o céu azul, viu as nuvens brancas, e não sentiu o vento. Nem a terra ou a grama sobre seus pés. Mas ele viu o horizonte. E virou pó.

        Ao deixar de sentir quem ele era ouviu a lei antiga e mística, sussurrada pelos ventos, de arvore em arvore, para cada grão de areia e terra, mas já não havia mais tempo. Pois nunca houve esse tempo. Assim, outro assumiu o seu lugar em frente ao caixa. Sobre seu pó, sobre seu animo, sobre sua história.

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Fernando Scaff Moura é

um dos promissores alunos da Oficina Literária de Isabel Furini, em Curitiba, e colaborador do Tiro de Letra.

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