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Conto

                                  Pistache com cerveja

                                                                                           Fernando Scaff

              O gosto salgado do pistache aromava a boca implorando pela boa companhia de um longo gole de cerveja. Em noites quentes e solitárias como essa, um gole amargo e esticar as pernas ouvindo o bom som de jazz na varanda de um quarto de um cassino é tudo que um trabalhador, depois de um dia duro, pode querer.

              Bem, talvez não tão trabalhador muito menos dia duro. Pedro era um jogador de poker profissional e acabara de trazer uma caixa de fichas roxas quentinhas para seu quarto. Deveria ter uns 300 mil dólares naquele criado mudo. Limpos. Ganhos entre blefes e jogadas milagrosas. Só de lembrar o rosto se contorcendo de alguns patos milionários vendo suas fichas trocarem de mão por culpa de uma ultima carta, tornavam aquela cerveja e aqueles pistaches divinos.

              Se sua mãe perguntasse se valeu à pena largar a faculdade pra aprender a jogar cartas, ele responderia “Sim. Agora leve 10 mil pra você”. Não faria isso, claro, sua mãe não precisava saber de suas escrotices. Mas era engraçado pensar sobre.

              Após a maravilhosa companhia de três loiras estupidamente geladas, espalhar cascas de pistache por todos os cantos, meia garrafa de whisky, a tentativa de inventar um drink misturando cerveja, whisky, muito energético e todas as pequenas bebidas do frigobar, uma bela mijada e esquecer completamente o nome de John Coltrane – Opa! Lembrou - resolveu trocar aquelas fichas por notas verdes e cheirosas.

              Isso não estava em seus planos a principio. Ia pedir para depositar tudo em sua conta, afinal, a internet estava ai pra isso. Mais sentiu uma vontade de ser o Tio Patinhas. E as fichas, mesmo sendo algumas, rolavam pela cama e doíam na cabeça. Notas seriam bem mais atraentes. Macias como o toque de uma mulher de lingerie vermelha em uma banheira de espumas, com uma taça de champanha na mão. Notas verdes. Era isso que queria.

              O que também o influenciou a trocar as fichas foi uma tirada. Daquelas bobas que só tem graça se acontecerem de verdade, e só acontecem com muito álcool. Iria chegar ao caixa e perguntar: “Tem algum gorila de biquíni?”, esperando ouvir um não, com a cara de bunda mais mal lavada do mundo, com aquele olhar de “você é um idiota”. Então, colocaria a caixa com as fichas roxas sobre o balcão e diria “Então me vê Trezentos Mil Do-la-res”.  

              Sentou novamente na cama, rindo. “Gorila de Biquíni, essa era boa”.  Talvez devesse mudar, se a moça do caixa risse também não ia ter a mesma graça. “Talvez advogado de biquíni?” e riu mais ainda, pensando em alguém de terno com um biquíni sobre a roupa. Ficaria com o gorila mesmo.

              Seu sorriso ébrio contagiou o condutor do elevador que insistia em dizer “Se sentindo com sorte, campeão? Vai na roleta, campeão? Hoje os caça-níqueis estão fáceis, campeão! ”. Pensou em falar algo relacionado a trocar o dinheiro, mas mudou de idéia. Vai que a piada chegasse aos ouvidos do caixa e perderia sua tirada. Limitou-se a sorrir e concordar. Ao final, deu uma gorjeta alta, só pra zoar. Ria pensando que aquele dinheiro não ia fazer falta alguma. Aqueles trocados na sua carteira eram nada, se comparado com o que estaria jogando pra cima na cama larga do seu quarto.

              Desceu as escadas da área dos elevadores para o lounge do cassino como se participasse do elenco de Dançando na Chuva. Tirou um chapéu invisível e seguiu andando como gangster, admirando as luzes e o som dos sinos que ocupavam aquela área climatizada. Cantarolava uma canção inventada, rimando trezentos mil com o que faria com toda essa grana como:"tenho trezentos mil, vou navegar vou naverar de barril, laralarila!", entre outras.

              Ao passar em frente a uma mesa com o pano verde estofado, brilhando fichas e três cartas viradas no centro, parou. Olhava as possibilidades de jogo, os seis jogadores sentados com expressões simples. Contou por cima as fichas, deveria ter uns cinqüenta mil ali, fáceis. Ter trezentos mil era bom, trezentos e cinqüenta seria melhor! Pediria tudo em notas baixas para fazer volume.

              Sentou. Pagou a aposta obrigatória e esperou suas cartas, olhando para todos os lados na busca por um garçom. Quando um tiro sibilou sobre as mesas verdes e as fichas multicoloridas, cortando o som dos caça-níqueis e se alojando precisamente no centro da testa de um homem gordo qualquer sentado diante de duas cartas de blackjack.

              Um tiro. Depois outro. Agora o cassino parecia ter se tornado uma bateria de samba, com pessoas gritando correndo, e o pá pá pá pum vindo de todos os lugares. Percebeu ser o único ainda sentado na mesa olhando alcoolicamente a cena do tiroteio.         

              Um homem estava atrás de uma pilastra com uma M16, atirando para dentro e se escondendo novamente. Outro estava no mezanino, com uma arma igual, mas disparava rajadas de bala para baixo. Os dois pareciam atirar em direção a uma mesa deitada, com três homens atrás disparando cegamente, a qualquer sinal de silencio, com pistolas automáticas.

              Viu os clientes, jogadores e funcionários deitados no chão, se esgueirando por trás de mesas e maquinas, se protegendo e tentando pegar uma boa visão do show. Só sentiu o perigo quando alguém puxou sua camisa azul clara amassada pedindo para que se protegesse. No chão, antes de se preocupar com a própria vida verificou as fichas. Estavam bem guardadas dentro de uma caixa de acrílico, enroladas em seu moletom cinza. Foi em direção de um grupo de pessoas que corriam para o banheiro, mas acabou sendo empurrado por um casal assustado. Caiu de lado em uma mesa, soltando suas fichas.

              Elas voaram pelo ar se espalhando. Fichas roxas brilhante, reluzindo os disparos das metralhadoras. Quando caiu no chão, sem tirar os olhos de todo seu ganho, viu-as pingar, uma a uma, no tapete vermelho, como uma chuva que acabara de se iniciar. Caíram quase todas no mesmo lugar, quicando e rolando. 300 mil dólares em fichas se espalhando sob o tiroteio.

              Uma mão pegou uma das fichas, depois cinco. Era uma mulher de vestido fendado vermelho. Com brincos e colares de diamantes. Agachada sobre o sapato alto, catando as moedas e colocando-as na bolsa. Estava rindo para uma amiga morena com um vestido azul escuro e um grande colar de pedras preciosas multicoloridas. Esta também usou a bolsa azul clara para pegar as fichas. As duas se olhavam, rindo comedidamente, concordando com alguma coisa. Uma ficha, outra.

              Pedro se levantou. Tropeçando começou a correr em direção das duas. As mulheres olharam para ele. Homens escondidos na mesma mesa atrás delas, gesticulavam com as mãos pedindo para que ele se afastasse. Pareciam gritar ou algo assim. Não importava. Ao se aproximar, levantou um chute com seu tênis all star amarelo e preto em cheio no nariz fino de plástica, fazendo sangue jorrar sobre a boca vermelha e pele branca. A amiga olhou, os homens olharam. Começaram a se mexer lentamente quando socou a morena na orelha. Ajoelhou-se ao lado dela e, segurando o topete de laquê, socou novamente, abrindo o supercílio. Os dois homens pularam em cima dele segurando seus braços. Acertaram um soco no seu estomago, outro no rosto. Com uma presença de espírito levantou a perna e acertou o saco de um, fazendo-o se contorcer de lado. O outro se projetou para frente tentando manter Pedro no chão.

              Tateando ao seu redor, Pedro encontrou algo gelado que, prontamente, usou para golpear o rosto do seu agressor. Essa coisa disparou. O homem caiu segurando a face machucada se afastando da M1911 Remington, nas mãos de Pedro.

              Um tiro acertou o homem que havia levado o chute no saco. Outro passou perto de Pedro que rolou para baixo da mesa onde antes estavam as mulheres e os homens. O que levara a coronhada foi se arrastar e levou um tiro na perna. As mulheres gritaram.

              As fichas ainda estavam no chão, sendo espalhadas pelo agitar do grupo. Os gritos provavelmente atraíram a atenção dos atiradores que dispararam uma rajada contra a mesa. Gritos e choro aumentaram ainda mais o pavor do momento. O que trouxe nosso herói para a realidade. Estavam atirando nele, e estavam fazendo isso por que ele estava armado.

              Tentou pedir silencio para as garotas, usando a arma como dedo indicador no shiiii! que fazia com os lábios. Elas calaram imediatamente, se abraçando. Dava para ver as lagrimas e sangue se misturando na maquiagem borrada das duas. Era algo feio de se ver, mas não havia tempo pra isso. Apontou a arma para os dois homens que, a essa altura, já estavam cravejados de bala e disparou novamente. Novos gritos. Mais agudos. Mais guturais. Mais choro. Muitas outras rajadas de balas.

              Pedro ficou olhando para a arma sem entender o que aconteceu. Estava disparando sozinha. Colocou-a ao lado das fichas, pegou a bolsa da mulher de vermelho. Começou a enchê-la. Esvaziou a bolsa azul na vermelha, e começou a se sentir com sorte. Não havia somente as fichas roxas ali. Havia varias!

               Por culpa do cheiro de sangue vomitou dentro da bolsa. A mulher de vermelho tentou empurrar xingando alguma coisa em uma língua estranha. Pedro colocou a mão em seu peito e a empurrou. Ela caiu sentada fora da proteção da mesa, e foi arrastada com os tiros, deixando um rastro de restos no chão. A mulher de azul começou a gritar e desmaiou. Ao colocar a cabeça para fora da mesa, levou um tiro certeiro. Os tiros pararam. As luzes foram desligadas. Pedro se pôs a tirar as fichas, uma a uma, da bolsa vermelha com vomito, limpa-las na própria roupa e colocar na bolsa azul. 

              Após um tempo mais homens apareceram no cassino. Atirando contra os homens de M16. Pedro já havia conseguido juntar todas as fichas daquele lugar dentro da bolsa e seus bolsos, e já começava a se abaixar para olhar em baixo da mesa na busca de mais fichas alheias, ou próprias, quando homens com fardas da policia, coletes a prova de balas, capacetes, lanternas e armas de calibre pesado, apareceram atirando para todos os lados.

              Homens pendurados em cordas quebraram os grandes vidros do cassino, com os pés entrando na frente dos corpos. Bombas de gás vieram na seqüência. Todo o cassino era iluminado pelo brilho das armas cuspindo fogo.

             Pedro viu um camareiro típico, com roupas e um chapéu cilíndrico vermelho, seguido por um anão de fraque, passar por ele. Do outro lado três pessoas vestidas de cowboys corriam para os banheiros.  “Meu caralho!” pensava, “estou em algum filme do Woody Allen?”. Pegou uma ficha no chão e guardou no bolso, aproveitou e pegou a arma também.

              Tentou sair daquele lugar seguindo aquelas estranhas personagens, quando avistou o caixa. Resolveu se dirigir para lá. Foi meio engatinhando, deixando os tiros e o anão para trás. Levantou-se. Viu que havia uma mulher com um uniforme do cassino dentro do guichê. Abaixada, parecia chorar em quanto mexia no celular.

- Oi. – Chamou Pedro.

- Que?

- Oi, você tem um gorila advogado?

- Que?

- Um gorila advogado, você tem, ai?

- Que merda é essa? Você não ta vendo que estamos no meio de um tiroteio, seu idiota?

- Não, desculpa. Era de biquíni. Eu queria um gorila... de biquíni.

- Minha amiga pode estar sendo usada como refém por esses filhos da puta e você vem fazer piada da minha cara? Vai a merda!

- Então me vê trezentos mil dólares. Digo, do-la-res! Em notas miúdas, por favor. – Sorriu.

              A mulher ficou encarando o homem com um olhar incrédulo saindo por cima do óculos, a boca caída meio aberta.

- Só quero meu dinheiro. – sorriu, levantando as mãos, tendo na direta uma bolsa azul clara e, na outra, uma M1911 Remington.

- Isso é um assalto? – os olhos de peixe arregalaram.

- Que?

              Um alarme soou alto sobre os tiros. Sirenes tocaram em vários lugares do saguão deixando tudo hora vermelho, hora escuro.

- Essa arma não é minha, eu achei no chão.

              Soltou a arma fazendo-a disparar. O tiro acertou um caça-níquel que apitou freneticamente. Pedro bateu no vidro.

- Só quero meu dinheiro moça.

- O vidro é aprova de balas. Você nunca vai pegar um centavo do cassino. Quando a policia chegar, você será preso!

- Acho que a policia já esta aqui.

- Quem foi o engraçadinho que apertou essa merda de alarme? – Disse um homem chegando abaixado em direção aos caixas. Vestia um terno cinza, gravata vermelha e um grande crachá onde se lia “Gerente”.

- Foi ela! – Pedro apontou o dedo para o guichê.

- Cristina! Não está vendo que já temos confusão de mais aqui dentro?

- Mas esse homem queria assaltar o cassino, seu Roger.

              Pedro deu de ombros. Sorrindo.

- Escute aqui. Temos tiros por todos os lados. Estão dizendo que tem uma bomba!

- Uma bomba! – repetiu Pedro.

- Estamos tentando evacuar o cassino, mas estamos cercados. E você me aperta a porra do alarme? Quer causar um pandemônio aqui, menina?

- Desculpe seu Roger. Mas ele estava armado, pediu dinheiro, apontou uma arma para mim. Eu só segui o procedimento.

- Eu queria meu dinheiro. – Pedro abriu a bolsa azul, mostrando todas as fichas para o Gerente.

              O homem ficou encarando a bolsa. Azul clara. Cheia de fichas de grande valor. Nas mãos de um homem com vomito no colarinho.

- Olha amigo. Estamos com problemas aqui. Não quero saber se você é um espertinho ou só um idiota. Mas se você tem esse dinheiro, ele é seu. Não importa as fichas. Fique tranqüilo.

- Eu queria me sentir o Tio Patinhas.

              O homem levou a mão na testa. Esfregou. Respirou fundo balançando a cabeça.

- Escute aqui rapaz. Como você ganhou esse dinheiro?

- Poker.

- Durante o tiroteio?

- Não... uma hora atrás. Eu acho. – olhou para o pulso, buscando um relógio invisível.

- Você é nosso cliente aqui?

- Estou no quarto 237.

              O gerente ficou olhando para o garoto. “Suíte Premium?”

- Temos um registro eletrônico dos nossos clientes, para que eles tenham liberdade no cassino. Você pode sair da mesa deixando suas fichas durante dias, e quando voltar aquela cadeira ainda será sua e suas fichas estarão contadas esperando por você. Se você resolver comer no seu quarto, pode até usar as fichas na mesa. Não se preocupe.

- Sério?

- Sério. – Roger se abaixou ouvindo um tiro passando perto.

- Era bastante dinheiro.

- A quantia que for, companheiro. Se quiser, depois da confusão. Ligue para nossa central e peça um depósito pela internet.

- Legal.

              O homem se abaixou e foi andando de volta para onde veio. Pedro ficou ali olhando o anão conversando com um crupiê atrás dos biombos do banheiro. Depois, meio abaixado, foi andando para as escadas. Apertou o botão do elevador. Não acendeu. Apertou varias vezes e nada. Olhou para a escada, não achou disposição para subir vinte andares. Ouviu alguém chamar. Viu um grupo escondido nas escadas de emergência. Foi para lá também.

- Estão dizendo que tem uma bomba. – foi a primeira coisa que disse ao grupo.

              Pânico. As pessoas começaram a querer sair desesperadamente das escadas. Chorando, rezando. Mas não tinham como sair, o saguão estava com tiros para todos os lados e a saída pra baixo fora bloqueada por carros, e ninguém se atreveu a subir quarenta andares, e agora não fariam. Se explodisse tudo, o ultimo andar parecia ser o pior a se estar.

              Pedro se sentia com sorte, não perdera seu dinheiro, afinal. Sentou nas escadas. Sentiu o cansaço alcoólico tomar seu corpo. Deitou, usando como travesseiro a bolsa azul. Bocejou.

              “Gorila advogado” riu, “que idiota.”

              Antes de dormir, viu o anão se juntar ao grupo.

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Fernando Scaff Moura é

um dos promissores alunos da Oficina Literária de Isabel Furini, em Curitiba, e colaborador do Tiro de Letra.

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