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Contos

  Os raios de sol cortavam a escuridão

Fernando Scaff

           No quintal da minha infância havia um vasto campo de grama e uma floresta de araucárias. Eram largos troncos marrons sob uma grama baixa, com mais terra do que folhas. Ali, com as altas copas frondosas, deixando o tronco nu, não entrava luz e, ao entardecer, com o sol se pondo sobre as arvores, a escuridão trazia o frio.  Um frio justificado não somente pela floresta que pouca luz recebia, mas por um rio de pedras a uma curta distancia caminhando por entre as arvores e suas grimpas.

               Lembro-me de ficar sentando, entre os muros de tijolos vermelhos, sob a grama verde, com meus bonecos de ação, olhando para aquela formação de arvores irregular que davam um aspecto sóbrio e místico para o meu quintal. Ali, tudo existia. Unicórnios, dragões, monstros, fadas e duendes. Eu ficava parado, olhando, tentando vê-los. Seus olhos flamejantes, as íris verdes, o andar delicado. O brilho nítido da magia.

               Em domingos de sol eu pegava minha toalha e corria por entre os troncos, pulando raízes, desviando de toras caídas até chegar ao rio, em minha pedra favorita, onde eu atirava os chinelos, arremessava a toalha e partia a pulos e espichadas d’água rio a dentro. Era um rio raso, com pedras grandes e polidas ao fundo. Pelo fim de tarde ele brilhava de uma maneira branca incandescente, um rio feito de sol, como ouvi minha mãe dizer. Meus pais chegavam sempre depois, para sentar nas pedras deles, molhar os pés e me chamar para a janta.

             Quando voltava, de mãos dadas entre as conversas de meus pais, olhava em volta, tentando ver se também me espiavam da escuridão aquelas criaturas. Às vezes via. Outras vezes não.

             Eu adorava passar minhas tardes ali, olhando as arvores ou correndo na grama, que tinham aquele cheiro típico depois que meu pai a cortava. Minha mãe não cortava a grama. Preferia cuidar das suas flores em um jardim vertical nas paredes de tijolos. Brincava com as cores. Não consigo me lembrar de como eram, pois sempre eram diferentes. Ela usava flores roxas, amarelas, vermelhas e multicoloridas, em vasos de cerâmica pendurados em ganchos postos nos buracos dos tijolos. Ela trocava os vasos, ou as flores, mas sempre tínhamos cores novas, pequenas e delicadas nos muros. Não era raro meu pai cortar a grama e minha mãe cuidar das flores, em quanto eu corria entre eles puxando o rastelo.

             Do lado direto do quintal havia uma horta. Cheia de cheiros que meus pais sempre colocavam no meu nariz. Falavam os nomes de cada uma daquelas plantas como se fossem amigas de infância. Quebravam-nas pelo meio, com delicadeza, amassavam na mão e colocavam no meu nariz, dizendo o nome. Sempre um diferente do outro. Os dois cuidavam da horta juntos. As vezes eu ajudava, fazendo os buracos das sementinhas com uma pequena pá verde.

           Uma vez, me lembro bem, minha mãe colocou um cavalete sobre a grama, ao lado de dois tijolinhos que serviam de gol, e que nunca saiam daquele lugar, ao ponto da grama ser alta em volta deles, e começou a pintar. Era incrível ver aquelas arvores enorme surgirem naquele quadro branco, junto da luz do sol que cortava a escuridão do entardecer que aparecia, suavemente, em delicadas pinceladas sobre o desenho. Ela vestia um macacão azul, sujo, o cabelo preso atrás e o óculos que tinha tanta vergonha de usar e vivia perdendo. Estava com seus chinelos novos, que ganhara nesse mesmo dia. Era aniversário dela e, como todo aniversário, ela pintava.

            Na churrasqueira estava meu pai, soltando aquele cheiro de carne assada com molho de mostrada que eu adorava. Os amigos em volta, respeitando o ritual de minha mãe, bebendo cerveja e beliscando carne. Eu estava sentando em um dos tijolos, com meus bonecos de ação e olhando a todos. Estava tomando cuidado para não fazer barulho e não espantar as minhocas. Meu pai deixava aquele golzinho montado por que era a casa delas. Normalmente, depois de uma noite de chuva, ele acordava cedinho, levantava os tijolos e pegava algumas delas e soltava na hortinha. As minhocas, para mim, moravam todas ali, e aquelas que estavam sob o tijolo eram as guardas de um castelo subterrâneo gigantesco que só tinham o azar de ter um inimigo, meu pai. Que as colocavam em uma grande prisão de tijolos e concreto que, para elas, ficavam a uma distancia gigantesca, a horta. Elas eram criaturas mágicas também, que viviam no reino delas.

          Nesse dia, eu resolvi ir levar meus bonecos para a água e esperar a comida no rio. A noite estava caindo, mas não acontecia nada na festa, por isso, achei que ninguém iria se importar. Sai pelos troncos, olhando em volta com cautela, até chegar ao rio, onde sentei na água gelada e travei uma batalha épica entre os bonecos. Em um momento, um deles voou sobre a água e sai para pegá-lo, mas não conseguia acha-lo. Culpa da escuridão da noite. Em um momento alguém me puxou pela cintura, me tirando de corpo inteiro da água com certa violência, e soltava uma respiração alcoólica sobre meu ombro. Era meu pai. Mãe e seus amigos estavam na margem do rio. Ela chorava, os outros falavam alto, ou sussurravam algo para ela. Enquanto meu pai falava com todos e eu olhava para trás. Falava para eles que um deles havia ficado no rio e o outro estava nas pedras. Mas ninguém me ouvia. Meu pai não gritou comigo só falou para nunca mais fazer isso novamente. Eu não sabia o que, mas sabia que não faria. Minha mãe chorava e me enchia de beijos, e eu não sabia por que.

            Olhando a floresta por sobre o ombro de meu pai, eu não via nada alem da escuridão.

            Só depois eu percebi que meu pai carregava na mão uma arma. Era um fuzil Savage 99 fabricado em 1921, nos Estados Unidos, para a Primeira Guerra Mundial. Possuía cinco tiros calibre .303. Era uma arma um tanto quanto rara comprada pelo meu avô nos anos 60, depois do golpe militar. Lembro-me dela estar impecável. Com a coronha de madeira bem polida, e o gatilho e cano de um metal preto brilhante. O recarregador era na mão, ao estilo alavanca, com o cão interno, que ajudava na precisão e no recuo da arma. Ao lado esquerdo, meu pai me mostrou, havia uma numeração, gravada em metal amarelo, que era a quantidade de cartuchos internos, que chegavam ao total de cinco. Na coronha, meu pai colocara uma capa justa de couro com suporte para 10 outros cartuchos a serem recarregados. Era uma arma linda, meu pai me falou, antiga e precisa.

           Ele guardava a arma sobre a estante de livros, no escritório dele. Eu nunca a vira antes, mas depois desse dia, sempre que eu ia pegar algum livro na estante eu sentia que a arma estava ali. Esperando.

            Nunca mais sai correndo por entre as arvores em direção ao rio de sol. Nem mesmo ficava sozinho sentando no quintal de grama.  Agora, a sala era o mundo de meus bonecos de ação.

           Quando meus pais iam ao rio molhar os pés, eu ia junto, de mãos dadas e sempre ao lado deles. E não importava olhar par aos lados, nem na ida e nem na volta. Pois nunca mais iria ter alguém ou alguma coisa lá.

 

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Fernando Scaff Moura é

um dos promissores alunos da Oficina Literária de Isabel Furini, em Curitiba, e colaborador do Tiro de Letra.

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