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Contos

                       Vidro

                                                                                           Fernando Scaff

              Diante do vidro a rua calma, mal iluminada pelo amanhecer, parece esperar sonolentamente. Esperar algo que, de súbito, começa. Os passos apresados ecoando pelas ruas, os pneus ligeiros, freando, acelerando, seguindo seus caminhos. O reflexo de capotes, sobretudos, jaquetas de couro, moletons, variando entre marrom, preto, cinza e vermelho entram em contraste com a cor amarelada das lojas do outro lado da rua, do asfalto esquentando e a luz refletida nas lentes de óculos escuros ou não.

              Com o tempo, a coloração amarelada se torna esbranquiçada, cinza e escuro. As sombras das arvores dominam o ambiente e, daquelas roupas pesadas, só braços a mostra restaram. Blusas penduradas nos ombros. Sandálias e chinelos. Um homem senta, com uma manta em volta do corpo, um pote transparente nas mãos, uma colher e come lentamente, olhando para o vidro. Em seus olhos, o reflexo de um vaso se torna nítido.

              Um vaso branco, com desenhos azuis. Um barco, navegando em águas turvas e turbulentas. As velas a contra pano. As cordas bem esticadas. As madeiras parecendo estralar com um vendo imaginário, inexistente no desenho. Em cima, próximo do gargalo, tijolos foram desenhados displicentemente, como que diz que, por baixo dessa porcelana branca, existem pequenos tijolinhos, mau feitos, tortos, mas que sustentam o todo. O aspecto desses tijolos é de uma parte quebrada e, o contorno lateral, desce sinuosamente até acabar, no branco do vaso.

              Um barco, muito parecido com aquele, de uma China no passado, com as velas de ceda bem repartida, usado pelos pescadores de um vilarejo do pacifico, estava navegando mar adentro. Neste dia comum, um deles não pode ir. Ficou sentado na varanda, com uma infecção no pé, olhando o mar azulado e frio a sua frente, com um misto de saudade e preguiça. Tinha nas mãos uma massa mole, meio acinzentada, em uma mezinha ao lado, um pequeno pote de nanquim e um palitinho de bambu com uma fina ponta. O homem olhava o mar, tendo na mente o pedido de sua avó de terminar aquele vaso, em quanto ela cortava lenha.

              Pelo tempo em que o vaso ficou apoiado em sua mão a massa amoleceu um pouco, e o gargalo ficou meio torno. Aproveitou para desenhar tijolinhos ali, tentando copiar aqueles da casa ao lado. Depois, vendo a chuva no horizonte, escorregou a vareta com tinta displicentemente pelo vaso, lembrando que seu pai e seu irmão estavam naquele barco e que, pelos relâmpagos, o perigo da pesca seria severo. Com a respiração ofegante e a dor de uma perda antecipada, se pôs a desenhar, riscos ligeiros que, por culpa de uma vista embargada em lagrimas, davam voltas de mais. Ou traços retos de mais. Molhava a vareta e se punha a fazer o barco como imaginava, o mar como imaginava, tentando manter ali, naquele vaso um barco inteiro e que, com isso, voltasse inteiro para casa. Com o tempo, como suas lagrimas escorriam pelo queijo e caiam sobre o desenho, e o azul intenso ficou entrecortado com pequenas manchas azuis claras. E o barco, de uma vigorosa embarcação, parecia velho e descuidado.

              Agora o barco estava refletido no óculos meia lua de uma senhora que, tentava entender aquela boca de vaso torta, o desenho desbotado e por que aquele preço absurdo em um vaso tão feinho, e com um desenho que nem completava toda a volta. A senhora sai andando de cabeça baixa, revelando as ruas azuladas do entardecer. Os braços de manga curta, as conversas sorridentes e passos lentos, deram lugar, novamente, para os passos apreçados, capotes e sobretudos, e carros cuja luz vermelha refletia no vidro, mudando a coloração branca do vaso para um rosa e roxo. Não demorou muito para a escuridão cair sobre a rua.

              Maltrapilhos caídos diante do vidro soltavam uma fumaça esbranquiçada, que subia em frente ao vaso. Como as neblinas de uma manha, quando os pedaços de madeira flutuavam pela praia, trazendo corpos e esperança. O vilarejo ajudou os homens a se levantarem. Mas nem todos estavam ali. Nem todos chegaram junto com a neblina. Aquele vaso serviu como suporte para as flores de uma família desestruturada. Depois, foi embora com eles, como ultima lembrança.

              Passou um carro iluminado de vermelho e azul as ruas. Os maltrapilhos foram para o lado oposto. Mulheres passaram em frente ao vidro, mostrando as costas para o vidro, e todo o resto para os carros que passavam. Ali pararam. Tentaram se encontrar no vaso, ou no vidro. Passavam batom. Retocavam os olhos e acertavam os seios dentro de um sutiã colorido e pequeno de mais para elas. Mostravam cicatrizes de cigarros, mas as cicatrizes nos olhos eram mais fundas. De todas sobrou uma, sozinha, que parecia sentir finalmente o frio da noite sobre a roupa fora de contexto com o clima. Olhou para si mesma secando as lagrimas. “Nenhuma mulher nasce pra puta”, dize para o vaso. Mas esse vaso, em Londres, depois em Paris, vou belas putas, feias mortes, e não quebrou sobre um surto de uma mulher orgulhosa de mais com sua profissão, pois caiu nas mãos de um homem hábil que, por furto ou sorte, saiu daquele bordel carregando consigo, o vaso.

              Ao amanhecer, o vaso recebeu os cuidados de sempre, de um homem de olhos puxados, nariz fundo e cabelo grosso e liso. Espanou o vaso, limpou com um pano levemente úmido, limpou o suporte, acertou o preço ao lado e sorriu vendo aqueles tijolinho tortos, o gargalo levemente de lado. E aquele estranho barco, que parecia estar sendo arrastado para fora do desenho. O azul não era intenso em todo o desenho. Havia pequenas manchas azuis mais claras. O homem não entendia bem o por que, mas sabia que esses vasos não eram assim. Seus defeitos eram enigmas que ele queria entender. Se olhasse por tempo suficiente, talvez, conseguiria ver uma vila de pescadores, um cemitério de grama bem aparada, viagens, cidades de lama e pedra, brigas e amores.

              Nisso, o vaso também acreditava. Se olhasse tempo suficiente iria entender, mas não entendia. Nem a varanda, nem o chão, nem as estantes, nem o vidro a sua frente.

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Fernando Scaff Moura é

um dos promissores alunos da Oficina Literária de Isabel Furini, em Curitiba, e colaborador do Tiro de Letra.

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