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Conto

             

               Comensais do Homem

  

                                                                                           Fernando Scaff

             Os livros se perfilavam como colunas francesas se preparando para o combate, levantando estandartes diferentes, rostos que queriam dizer cada um uma coisa. Cada qual sua historia. Todos sobre o comando de uma única mente, um senhor soberano. O leitor.

          E o leitor estava sentando em uma poltrona listrada verticalmente em tons de azul e cinza, com pequeninas pernas de madeira. Braços estofados e um puff vermelho.

          Ao lado dele, como um guardião, um criado, mudo claro, como os bons criados, segurando seus livros e uma fumegante xícara de café. Observava firme, mas sem prestar atenção, o comandante, que tinha nas mãos, numa conversa particular, O Cavaleiro Inexistente, vindo por parte de Italo Calvino. Os dois travavam um diálogo repleto de ensinamentos e emoções.

           Ser influenciado pelo que se lê é um dos prazeres dos leitores. Sentir as brisas de um mundo que não nos pertence, mas acabamos nos tornando parte dele. Relaxar e adentrar nas entre linhas de um universo paralelo e derrotar dragões. Era isso que o leitor pensava quando viu, diante de sua biblioteca, uma traça.

           De fato, sua biblioteca seria um bom butim para aqueles sorrateiros. Não era grande, ocupava duas prateleiras de sua estante de marfim branco. Estava naquele ponto das bibliotecas em que leitores diziam “Já vi maiores”, pois sabiam que ela cresceria ainda mais. 

         Aquelas traças, supondo que sempre há mais de uma, reduziriam seus soldados a pó. Furariam suas armaduras. Destruiriam suas lembranças.

         É de conhecimento comum que as traças não lutavam de maneira honesta. Forçavam a corrupção dos soldados, minando sua vontade. Vampiros das letras. Inutilizavam seus oponentes para sempre.

         A dor de despachar um bom homem por invalidez acabava com o moral de qualquer leitor. Despachar um amigo era ainda pior. Ver Cem Anos de Solidão, nos reinos de Gabriel García Márquez, junto de outros bons homens, movia qualquer coração a não querer esse fim a ninguém. Se fosse, seria lutando e iriam para a grande biblioteca do universo para onde vão os bons homens. O comandante não permitiria uma morte vã, faria o que fosse para salvar seus fieis homens do esquecimento.

          Mas ali estava a traça que, como era de sua natureza, olhou desafiadoramente. Zombou dos pensamentos emocionados do comandante e se dirigiu aos livros, sumindo na sombra deles. A guerra começara.

          Não havia por que entrar em combate sem conhecer o inimigo. Eram bárbaros, sem sombra de duvida, sua ambição era maior que seu corpo, suas técnicas misteriosas. Quando se pensava que foram embora, um sinal qualquer de sua presença sempre aparecia.

          O comandante descobriu que aqueles seres eram comensais do homem. Comensais do Homem. Esse era o nome daquele exercito. “Imponente”, pensava, “mas irá ruir perante a minha supremacia”.

          Podiam ficar meses sem alimentos. Estavam no mundo a 300 milhões de anos, talvez mais do que o próprio homem. Era um império longo, sem sombra de duvida. A experiência com certeza estava a favor deles.

         No fim, decidiu que não importava a pesquisa. Acima de história, métodos e sabedoria, o comandante possuía algo que elas não tinham. Tamanho. Lutaria contra todos. Sozinho. Empunhando seu chinelo como uma espada, começou a mover seus homens. O inimigo se infiltrara em suas fileiras. Deveria acabar com o mal pela raiz, antes que se sentissem a vontade. Assim, homens que antes, talvez, nem se conhecessem, como os três valentes da Fundação, vindo por parte de Isaac Asimov ficaram lado a lado com o detetive Sherlock Homes e com O Jogador, do reino distante de Dostoiéviscki.

         No fim da mudança, encontrou três vilões. Com suas armaduras prateadas repletas de escamas. Um design tão complexo, que mostrava o motivo de serem tão temidos. Possuíam elmos que cobriam seus olhos e uma agilidade que pareciam não estar vestindo uma armadura completa.

         Era o primeiro confronto, seus homens estavam todos olhando e o terreno estava a favor do atacante. Com um golpe certeiro, fez sua espada empurrar o ar. Acertou em cheio o primeiro. O golpe fora magistral, quase acertara dois! Agora, sobre o campo de terra branca, com as vísceras a mostra se via a armadura destroçada. Um inimigo perecera. Ao invés de um exemplo para todos, era só o primeiro. O Comandante estava só aquecendo.

      Percorreu os olhos pelo campo, os outros dois fugiam covardemente para direções diferentes, abandonando o amigo para trás. A falta de sentimentos era a característica mais cruel dos Comensais do Homem. Não se importavam com a morte, somente com a vingança. Não tinham amigos, somente a possibilidade de morrer primeiro o outro, ao invés deles. Não tinham respeito ou consideração. Quando conquistavam o que queriam, não deixavam nada para trás. Nem uma historia. Consumiam tudo para, depois, consumir outro reino. O Leitor não permitiria isso. Como comandante, faria todo o possível para salvar seus amigos.

        Com um passo de sete léguas, alcançou o segundo. O golpe saiu errado, a espada reverberou no chão, deixando uma marca de sujeira e restos do primeiro inimigo morto. Com uma agilidade soberana, desferiu um segundo golpe. Certeiro. Porem, a força ou os deuses não estavam ao seu favor. Ao levantar a arma, viu-o correr. “A armadura!”, concluiu. Só podia ser a armadura. Retomou a calma e golpeou novamente, com mais força, com mais cuidado. Deixando outro corpo no chão como uma pasta de miúdos e lembranças do que um dia foi aquele combatente. Ao longe o ultimo já quase sumia de vista. Ia em direção a outra parte do reino, mais distante, mais escuro. Provavelmente chamaria reforços, criariam outra estratégia. O comandante não podia permitir, segurou sua espada com convicção, mirou e arremessou-a com toda a força, sibilando pelo ar, se projetando por sobre a terra branca, voando sobre os domínios da Escrivaninha, por um triz não acertou a grande Torre do Abajur, para, por fim, acertar o porta-lápis. O inimigo nem titubeou em seu caminho e sumiu dentro de algum covil escondido.

        Passando por sobre seus homens, disparou para o Ducado do Quarto, onde o dia amanhecia e não se via rastros ou vestígios do inimigo. A batalha fora ganha. Mas a guerra ainda continuaria.

        Devia travar uma estratégia, afinal, não havia como ficar de sentinela todo o tempo. O inimigo estava em maior numero e agia com melhor eficiência durante a noite. Uma batalha por dia acabaria minando suas forças alem de aumentar as do inimigo. Apelou para seu General Sun Tzu para averiguar as próximas ações. Era desvantagem prolongar a guerra, logo, acabá-la imediatamente era a melhor conclusão. Mas como?

        Foi atrás de armamentos. Uma guerra química se iniciaria, porem não queria infectar seus soldados com o cheiro do velho modo de guerrear. Iria na casa do inimigo, dentro de suas camas, violaria seus sonhos e os mataria em quanto dormiam, quando não esperavam pelo ataque. Seria incansável. Não sobraria uma única brilhante armadura prateada para contar a história.

       Começou a retirar gavetas e achar cavernas de refugiados. Colocava suas bombas brancas e matava a golpes violentos os que escapavam. Em baixo de construções gigantescas, mesmo quando o inimigo lá não estava, deixava armadilhas prontas. Era uma questão de tempo até que todos perecessem ou fossem expulsos do reino.

        Mas não foi isso que aconteceu. Após todos os cantos, todos esconderijos, toda escuridão ser desvelada pelo atento olhar do comandante, a revanche se iniciou. Fora sutil, psicológica, porem, deu à guerra outro patamar.

         Quando o dia se ia em todo o reino, o comandante foi a cozinha esvaziar sua xícara fria, e se preparar para retomar o diálogo com o seus soldados. Contudo, de soslaio, quase sem querer, o Comandante viu sobre o estandarte do A ilha do Dia Anterior, vindo da parte de Umberto Eco, um inimigo. Estava somente parado. No meio. Não se podia ver sua expressão, pois estava escondida no elmo. O inimigo estava pronto para o combate. Blasfemava contra a fé do comandante. Parecia defecar sobre suas crenças. Zombava de seus sentimentos. Caminhava com suas patas imundas por sobre seus amigos.

        Mais que depressa, sacou sua espada e desferiu um golpe poderoso, obliterando o infeliz e lento inimigo. Deixando uma mancha de sua existência por sobre o nobre soldado.

        O efeito fora trágico. A sujeira do corpo do Comensal do Homem estava espalhada por sobre o inocente que, vitima da armadilha de um ser que não dava valor a própria vida, não teve chance de se defender.

        Sujo. A guerra era suja e feria tanto os guerreiros, quanto aqueles que se dedicavam à paz. Haveria revanche. Retaliação. Pois não há motivos para pensar na morte quando a vida está em jogo.

        Prolongaria sua vigília pelas horas que fossem necessárias. Mesmo sabendo que, com o poder da lua, eram mais fortes. Monstros. Mas não houve uma longa espera. Pareciam ter vindo recolher os corpos de irmãos mortos, pois acabaram aparecendo às dezenas. Vinham de todos os cantos. De todos os reinos. Silenciosos. Quando percebeu, estava desferindo golpes a esmo. Matando uns sobre os reinos de terra branca, outros que vinham andando pelo céu. E mesmo aqueles que desfilavam pelos cânions que seus amigos faziam no chão.

         Acertava um, mas acabava chutando um agrupamento inteiro de soldados. Esmagava outro, sem querer acabava criando novos relevos no chão. Para matar aquele que corria covardemente, tinha que mudar toda a geografia do lugar. Arremessava a espada. Criava outras catapultas. Improvisava armas para completar seu genocídio.

         Houve um momento que as os Comensais pararam de vir. Mesmo assim, ele foi atrás. Abrindo novamente as cavernas. Desarrumando construções. Mudando a ordem da natureza pelo seu prazer de matança.

        Não havia mais motivos para calma, nem para piedade. Quando a quantidade de destruição é muita, não faz sentido acalmar os ânimos por mais uma estatística tão pequena. São números pequenos dentro da porcentagem. Nesse pensamento seguia em frente. Espada em punho, orgulho no peito e a canção da vitoria decorada. Matou outros povos também que não eram os inimigos iniciais, mas eram tão bárbaros quanto, com seus oito braços ou carapaças marrons. Maiores e, talvez, mais perigosos. Inimigos pessoais que nem imaginariam encostar em seus homens. Mas não havia motivo para deixá-los em paz. Estavam no combate, era combatente e, se não estavam matando seus inimigos, eram inimigos também.

       Comandante pensava em novas armas, mais eficientes, que não cansassem e fizesse a guerra ser mais rápida. Como gás. Veneno. Fumaça. Fogo. Qualquer coisa que fosse capaz de facilitar sua guerra que, a essa altura, se tornava particular.

      Quando terminava de vasculhar todos os cantos, revistava-os novamente. Na busca por sobreviventes, encontrou um.

      Parecia ofegar. Talvez cansado de correr, ou chorava por sentir o cheiro da morte de seus irmãos de vilania. Não importava. Estava ali. Parado. Entre marcas de espadas e objetos caídos. Bem na quina. O Comandante também respirava pesado. A excitação era tamanha que, matar o último dos cruéis Comensais do Homem seria um prazer. Pensava em fazer um troféu, colocá-lo na parede exposto em lugar visível para que, quando um visitante aparecesse, pudesse responder “Sim, era o ultimo, e eu o matei”. A gloria. A gloria de ter vencido, com esforço e dedicação uma guerra. Não qualquer guerra, mas a Guerra das guerras. Do homem contra seus temores. Nunca mais o medo de que algo afetasse seu poder. Sua posição. Aquele era o ultimo e seria o símbolo de seu absolutismo.

     Sua espada pesava na mão já suada. Sentia seus músculos cansados de guerra. Secou a testa, moveu os ombros e deu um passo lento para não acovardar ainda mais o inimigo. Não tinha a menor intenção de dar um segundo golpe. Tentava olhar os olhos escondidos por entre as viseiras do elmo. Entender o corpo por baixo daquela armadura tão reluzente. Parecia ouvir a respiração do oponente, vê-lo tremer. E quem não tremeria? Diante de um oponente que era, no mínimo, mil vezes maior que ele? Seu poder era colossal. Não havia chance. Não haveria misericórdia.

      A espada cortou o ar fazendo-o cantar. O braço, em um movimento preciso, seguindo do ombro e do giro das costas abaixando, deu mais força e impacto ao golpe. Fora certeiro. O golpe fora tão brutal que espalhara o pó e as folhas caídas pelo chão.

       Sorrindo, levantou a espada para ver seu feito. E ali estava. Vivo. O ultimo dos Comensais do Homem. Golpeou novamente. Com mais raiva, com mais furor. Nada. O inimigo continuava ali, imóvel. Intocado. Mudou o ângulo do golpe e nada.

       Tentou se acalmar. Olhava o inimigo que também parecia estar atônito ao que acontecia. Como poderia estar vivo após golpes tão certeiros? A criatura começou a se mover. Imediatamente outro golpe fora dado, e a criatura continuava a andar. Parecia entender. Era imortal. Os golpes não a afetavam, ela era a ultima, e como ultima não poderia morrer. A natureza não permitiria. Andava com orgulho de estar viva, pois sabia que, em quanto andasse, causaria raiva no algoz de seu povo. Em quanto andasse, seria o mártir de uma era, um símbolo de um povo que não poderá ser esquecido. Em quanto andasse, provaria que deus está do lado dos pequenos, dos miseráveis, daqueles que já não tem mais nada a perder. Em quanto andasse seria lembrado por opressores e vitimas que sim, a esperança existe. Em quanto andasse... Paf.

       Errou novamente.

       Após refletir, o Comandante percebeu que sua espada era larga de mais para acertar um alvo em um terreno estratégico como aquele. A quina do chão. Virou sua arma e bateu de lado. Percebera agora que, ao golpear dessa forma, uma área menor do que antes causaria dano. Era só calcular melhor e então... paf! Fim.

Sim, era o fim dos Comensais do Homem. Agora, livre de um dever árduo, ele poderia descansar. Respirou fundo e resolveu olhar todo seu Império. Sua reconquista. 

      Viu seu reino destruído pela guerra. Montanhas movidas, lixo espalhado, destruição e desolação. Concertar tudo iria levar mais tempo do que a guerra, isso o fez se sentir idiota.

      Olhou seus amigos que estavam caídos, virados, amassados. Alguns até mesmo rasgados. Um sobre os outros como corpos empilhados. Era sua culpa aquele estado, sua sede de poder, sua cegueira. Imaginava agora se tivesse dado continuidade ao seu projeto de usar fogo. Nem pensara nas conseqüências, acabaria com tudo. Sua guerra tornara o lugar em que morava inóspito. Destruiu seu reino. Não valia a pena ser soberano daquelas terras improdutivas.

       Ao olhar em volta reparou no corpo de um dos inimigos esmagado. Começou a olhar que havia vários deles, em todos os lugares. Dezenas deles. Em cima, dos lados, embaixo. Todos os lugares tinham pelo menos um corpo deixado para trás, que não seria enterrado, não haveria quem enterrá-los. Nem haveria como, eram impressões digitais nas paredes. Vestígios do que um dia foram. Irreconhecíveis. Esmagados pela loucura de uma guerra, pela insensatez humana, por não se preocupar com o que iria acontecer.

        Começou a limpar.

      “Quem negaria a própria essência, nosso egoísmo e nossos impulsos? Quem se reprimiria diante de viver e sentir? Pode escolher o destino... Nascemos com a ambição, com o desejo. Vingança? Talvez. Mas continuar vivendo como somos e aceitado aquilo que sempre fizemos. Essa é nossa resposta ao mundo. Nossa vontade e nosso desejo. Isso nos tornou soberanos sobre a terra.”

       Pensou a traça, por entre seu elmo reluzente, dentro de sua armadura prateada, enquanto olhava para dentro do Império do Leitor. Entrou. Ficaria meses aguardando para concluir seu plano, mas o faria. No fim, sempre conseguiam o que queria.

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Fernando Scaff Moura é

um dos promissores alunos da Oficina Literária de Isabel Furini, em Curitiba, e colaborador do Tiro de Letra.

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