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Contos


Calce esta força

Flávio Luis Ferrarini

Pernas e correria no jogo de bola.

Pernas velozes nos pega-pegas da vida. 

Pernas rápidas no caminho da escola. 

Pernas ágeis nos descaminhos do mundo.

     Meus braços fininhos mal aguentavam o peso da mochila. Minhas bochechas também não eram lá essas coisas. Por mais que as inflasse para adquirir maior eficiência, a fim de botar medo nos oponentes, nenhum efeito concreto produziam. Minha boca não era suja. Não conseguia romper em palavrões furiosos. Minha coragem era de fiapos. Diante da menor ameaça, recolhia os olhos e fazia-me cor do leite.             

      Sobrava-me as pernas. Estas sim variam o chão quando acionadas, como TURBINAS de avião. Corria ao ouvir os passos nervosos de papai vindo pelo corredor da casa. Corria ao ouvir os xingamentos de mamãe. Corria ainda mais quando ouvia as assassinas abelhas africanas zunindo ao redor da minha cabeça meio oca. 

      Minhas pernas me salvaram de virar um saco de treinamento de boxe num jogo de bolinha de gude durante o intervalo de aula (se tiver menos de trinta, pergunte a seu pai o que é bolinha de gude). Em um dado momento, cometi a tolice de recolher um punhado de bolinhas de vidro coloridas do gude. Não tive tempo sequer de olhar para uma nuvem que o mundo veio abaixo. 

      – Agarre o imbecil

      – gritou Cabeção.

     – Quebre a cara dele

     – emendou Avelino.

     – Vamos, corra atrás do imbecil

     – ordenou Miguel.

      Empurrado pelo meu rápido par de pernas, disparei como um foguete na rua de chão batido ia morrer na casa do meu avô Pedro, com os parceiros de jogo lesados na minha cola em violenta perseguição. Logo, porém, foram ficando para trás com a língua pendurada no canto da boca. Minhas pernas de papaléguas, o ROADRUNER do Paredes, me salvaram de levar uma surra fenomenal.

      É claro que eu calçava a "FORÇA" do KICHUTE.

      Para você que não lembra ou nunca ouviu falar, o Kichute, misto de tênis e chuteira e todo em preto, era feito de lona com cravos de borracha. 

      Apesar de o  Kichute ser o objeto de consumo desejado por 11 em cada 10 garotos na época, preciso confessar que eu, de certa forma, morria de vergonha do Kichute, quatro dedos maior do que o meu pé.         

      Papai cuidava em encher as pontas do Kichute com jornal velho. Era tanto papel que podia tranquilamente render uma bela fogueira de São João. Papai temia que o meu pé escapasse antes que o tênis envelhecesse e se deteriorasse por completo.  Papai começou a ter essa preocupação com a durabilidade dos calçados, antes que eu soubesse distinguir o pé direito do esquerdo e continuou preocupado com isso até depois dos meus pés pararem de crescer. O Kichute deveria morrer em combate. Se quer saber, a lembrança daquele Kichute continua machucando para valer os meus pés até nos dias de hoje.

      Como já disse, papai era durão:

      – Tudo bem se não quer mais usar o Kichute que estava novo há menos de dois anos, mas trate de ir se acostumando a caminhar descalço sobre as pedras ferventes.

     Só contei isso a você, porque acabo de presenciar uma turma de garotos correndo desengonçadamente, apesar de estarem calçando tênis com mais tecnologias agregadas do que um carro de fórmula um.

 

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Flávio Luis Ferrarini é

Publicitário, escritor e poeta gaúcho não necessariamente nesta ordem. Tem 16 livros publicados nos gêneros: poesia, conto, novela, crônica e narrativa infanto-juvenil. Sua coletânea Minuto diminuto (1990) mereceu elogios rasgados do poeta José Paulo Paes. Visite seu site:

http://www.flavioluisferrarini.com.br

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