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Contos

In memorian de

Emanuel Valpinges

 

José J. Veiga

 

 

A morte de Emanuel Frederico de Souza Valpinges nas circunstâncias conhecidas – ou seria melhor desconhecidas? – veio chamar a atenção do público para o desamparo em que vivem os  homens de talento neste país. Tivesse ele recebido apoio e proteção oficial, provavelmente não estaríamos lamentando a tragédia da semana passada. O caráter excêntrico e rebelde de sua personalidade não deve servir de desculpa para o abandono em que ele viveu os seus últimos anos. Todo gênio é excêntrico e rebelde, e o país que não se esforça por entender seus gênios e conviver com eles está comprometendo seriamente o seu futuro, a menos que deseje viver eternamente da ciência importada. Mas não é hora de apontar culpados. Valpinges foi sacrificado. Se por um lado lamentamos o seu sacrifício, por outro o aceitamos na esperança de que a advertência seja entendida e seguida.

              Conheci Emanuel Valpinges no ponto mais alto de sua carreira, quando ele recusou a direção do laboratório de psicofísica de Princeton  por discordar do compromisso de apresentar relatórios trimestrais. Valpinges tinha horror a escrever fosse o que fosse. Mesmo suas anotações de trabalho continham menos que o essencial, porque ele confiava muito na memória. (É possível também que ele as fizesse propositalmente truncadas para evitar a pirataria comum nos locais de pesquisa.)

           Do homem Valpinges só sei o que é do conhecimento geral: que nasceu em um subúrbio pobre de Campinas, aprendeu a ler em sua casa com a mãe doceira, vendeu doces na rua, brigou com outros garotos para defender a mercadoria; trabalhou como aprendiz de alfaiate, chegando a calceiro, foi enrolador de tapetes num circo, carregou malas na estação da antiga SPR – e depois da morte da mãe desapareceu da cidade. Ninguém notou a falta, porque ninguém tinha notado também a presença.

              Passaram-se os anos, Campinas vivendo muito bem sem o jovem Emanuel  Frederico. O café teve altas e baixas, o açúcar também. A nação continuou tomando empréstimos e consolidando empréstimos, a dívida externa crescendo; mas todo mundo continuava mais ou menos feliz, aplaudindo os gols de Friedenreich e Del Debbio. Até que o Estado de São Paulo – como outros jornais do país e do mundo – publicou um telegrama de agência dizendo que o cientista brasileiro Imanuel Fredrica Suza Valpinhzhis, trabalhado no laboratório de física da Universidade Americana do Cairo, conseguira isolar a partícula Ipsx, que permitia calcular o tamanho real – não o tamanho relativo – do universo inteiro, incluindo a Terra e tudo o que se contém nela. Foi um choque para a vaidade dos homens, que se julgavam criaturas de um metro e muito de altura, de repente saberem que habitavam um planeta de tamanho real não maior do que uma semente de goiaba (pela medida antiga, naturalmente), o que logicamente reduzia as dimensões humanas a trilionésimos de milímetros.

              Mas quem era afinal o “cientista brasileiro” de nome tão exótico? A nação só ficou sabendo quando o mesmo Estado de São Paulo mandou um repórter ao Cairo: era o antigo baleiro-tapeteiro-calceiro-carregador de Campinas. E o nome correto era Emanuel Frederico de Souza Valpinges. O resto é mais ou menos conhecido porque depois da primeira entrevista a imprensa não o largou mais, a não ser nestes últimos anos. Sua carreira foi acompanhada do Cairo a Utrecht, de Cambridge a Princenton. Entre Cambridge e Princenton houve houve um hiato de dois anos, preenchido por uma viagem ao Oriente. Herma Keyserling encontrou-o em Madura, na Índia, e relata esse encontro em sua coletânea de ensaios “Recontres avec des hommes remarquables”.

           Mas um ponto nunca foi esclarecido: o caminho, ou caminhos, percorridos por Valpinges desde Campinas até o Cairo. Fiz-lhe a pergunta uma vez – e com aquele seu jeito suave de afastar indiscrições ela apenas respondeu: Fui muito ajudado por umas pessoas que gostaram de mim”. A minha esperança – com a de todos os que se  interessavam por esse grande brasileiro – era que um dia ele esclarecesse o mistério em uma autobiografia ou livro de memórias, apesar de sua aversão a escrever; mas essa esperança também se foi com ele.

           Anos depois da primeira bomba, Valpinges soltou a segunda, essa já no Brasil: o processo hoje conhcido por PIMSE, ou Projeção de Imagens Mentais à Distância por Ondas Sub-Eletrônicas (MISEW em inglês – Long Range Emission of Mental Images Through Subeletronic Waves), imediatamente adotado por governos do mundo inteiro.

           Chocado com os malefícios que o invento causou e está causando humanidade (Valpinges era um puro, e não previu a possibilidade de deturpação, ou não acreditou que ocorresse), ele dedicou o resto vida a criar um contra-PIMSE que pudesse ser utilizado por qualquer pessoa sem necessidade de aparelhagem, talvez a ingestão de uma substância que, por meio de reações químico-físicas, criasse uma espécie de barreira  nas paredes internas do crânio para vedar a passagem de ondas mentais. Tendo sem querer dado uma arma poderosa ao Estado, ele agora procurava dar ao indivíduo um meio eficaz de defesa. E não só isso: queria restituir ao indivíduo – e consequentemente à humanidade – o exercício de sua função mais nobre, que entrou em declínio desde a institucionalização do PIMSE e caminha aceleradamente para a extinção.

           Dizem que os cadernos de Valpinges não foram destruídos no incêndio. Se é verdade, só nos cabe esperar que sejam preservados, e que um dia caia em mãos de quem saiba decifrá-los e tenha coragem de continuar as experiências – se ainda houver tempo.

 

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Fonte: ANDRADE, Jeferson de (org.). Cariocas de todos os contos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

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