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Contos

 

CASA NOS SONHOS

Margarete Hulsendeger

"Habitar oniricamente a casa natal é mais que
  habitá-la pela lembrança, é viver na casa
desaparecida como nós sonhamos".
  Gaston Bachelard

(A Poética do Espaço)

     Jogando o cobertor para o lado, sentou na cama assustada. Sentiu mais do que ouviu um grito escapar de sua boca. Afastando com as mãos trêmulas o cabelo dos olhos, respirou fundo várias vezes.

     - Foi só um sonho. Não foi real – repetia para si mesma querendo se convencer

     O ruído do vidro se quebrando ainda ressoava na sua cabeça. Olhou para a cômoda onde estavam as fotografias de sua infância. Encontravam-se todas lá, inteiras, sorrindo para ela.

     - Meu Deus, como é que um sonho pode ser tão real? – pensou, agora

um pouco mais calma.

     Nessas horas gostaria de seguir o conselho do psiquiatra: manter ao alcance da mão um caderno onde pudesse registrar os sonhos que a atormentavam praticamente todas as noites. No entanto, dessa vez, ela acreditava que não precisaria de uma folha de papel para lembrar o que havia sonhado. Ao contrário das outras vezes, tudo assumira contornos nítidos, beirando o real, a ponto de ainda sentir a ansiedade da cena interrompida.

     Estava, como sempre, andando por sua antiga casa natal. Perambulava pelos cômodos vazios de gente, em uma espécie de devaneio surreal, sentindo-se, ao mesmo tempo, protegida e desamparada. Sem pressa, passava os dedos pelas paredes. Engraçado, pensar nisso agora. Enquanto sonhava não percebeu qualquer tipo de aspereza, as paredes eram macias ao seu toque, como se fossem feitas de veludo.

     Depois, como só acontece nos sonhos, estava de pé na sala. Viu claramente o velho sofá. A mãe sempre insistiu em cobri-lo com uma colcha para disfarçar os rasgões e os buracos no tecido. Ela sempre odiou aquele sofá, pois sua simples presença a fazia se sentir pequena e desprezível. Viu ainda a poltrona do pai. Espaço sagrado que ninguém tinha a autorização de ocupar e onde ele lia os vários cadernos do jornal de domingo.

     A lembrança a entristeceu e ela afundou na cama, cobrindo-se com o cobertor. Sentia frio.

     Desviando o olhar do sofá e da poltrona, viu o imponente armário que ocupava uma das paredes da sala. Um móvel antigo, com grandes portas e gavetas, cheias de objetos, tesouros domésticos de sua mãe. Sobre o tampo, de madeira lustrosa, estavam as fotos.

     O frio no quarto pareceu se intensificar. Estremecendo ela puxou o cobertor até o pescoço.

     As fotos eram da família. Muitas. Três fileiras delas, arrumadas de forma desordenada, sem respeitar tamanho ou antiguidade. Nunca nenhuma foi substituída. Ao contrário. Elas se multiplicavam, como os cupins que cobriam todos os espaços de sua velha casa natal.

     A foto central era a do casamento de seus pais. Em uma moldura grande e dourada ela se destacava entre todas as outras. Depois à esquerda e à direita, imagens dos irmãos e dela em diferentes fases de suas vidas. Expressões alegres, rabugentas, brincalhonas, tristes, melancólicas se repetiam, mostrando a passagem implacável do tempo. A mãe sempre insistiu em registrar tudo, para ela o lema “Lembrar é viver”, não era um clichê, mas um fato da vida.

     Lembrar é viver. E quando não se quer lembrar, isso significa que não se deseja viver?

     Ela, ao contrário da mãe, não gostava de fotografias. Quando viajava sequer levava uma máquina fotográfica. Ela aprendeu a tatuar na mente as imagens, os sons e os cheiros dos lugares por onde passava. Não precisava de mais.

     De repente, um movimento na sala chamou a sua atenção. Era o armário, ele estava balançando. Assustada olhou ao redor. O sofá, a poltrona, e até mesmo o tapete que cobria o assoalho, estavam imóveis em seus eternos lugares. No entanto, o armário, alheio a essa imobilidade, continuava a se sacudir e com ele as fotografias em suas molduras descombinadas.

     A primeira foto caiu antes que ela pudesse se mover. A queda se deu de forma lenta, como se o tempo desacelerasse. Ela pôde assistir cada movimento, cada sacudida durante toda a descida até o chão. Contudo, o som da foto batendo no assoalho de madeira foi o momento mais aterrorizante. Sentiu o corpo vibrar com o ruído ensurdecedor. Depois, como se estivessem apenas esperando um sinal, todas as outras fotografias começaram a balançar e a cair. Cair e quebrar. Os cacos de vidro espalhando-se pelo chão e as molduras antigas se partindo uma após a outra. A foto de casamento de seus pais, a primeira a cair, estava no chão parecendo ferida, quem sabe, morta. Imóvel, ela apenas assistia.

     Jogando o cobertor para o lado, sentou na cama assustada. Com as mãos cobrindo a boca, tentou conter um grito.

     - Foi só um sonho. Não foi real – repetia para si mesma tentando se aclamar.

     Completamente desperta, sentiu um suor frio escorrer pelo corpo. Foi quando percebeu a estranheza da situação.

     - Um sonho dentro de um sonho?

     Virando a cabeça procurou na cômoda as fotografias de sua infância. Estavam todas lá, inteiras. Exceto uma. Nela apenas uma das metades ainda permanecia. A outra há muito tempo fora rasgada em um instante mínimo de fúria e rancor. Pena os sonhos não serem como o velho sofá de sua casa natal. Se fosse assim, uma simples colcha conseguiria cobrir os rasgões e os buracos de uma vida. Deitando-se devagar, ela rezou para que dessa vez pudesse dormir sem sonhar.

     Na velha cômoda, uma fotografia, em um porta-retrado lascado, se destacava entre todas as outras. Nela o olhar triste de uma moça vestida de branco fitava a sonhadora em sua cama.

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Margarete Hülsendeger

Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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