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Contos

BRINCADEIRA DE CRIANÇA

Margarete Hülsendeger

Tudo o que acontece é natural –

inclusive o sobrenatural.

Mario Quintana

     - Tem certeza? Não sentiu nada? – perguntou aflita Luíza. – Se você está sentindo alguma coisa pode me dizer, eu aguento.

     Márcia suspirou cansada. Era sempre assim, bastava colocar a mão no ombro de alguém, como um simples e inocente gesto de carinho, para todos saltarem assustados, querendo saber se ela sentia “alguma coisa”.

     - Sim, eu sinto – queria gritar. – Raiva, muita raiva!

     Márcia lembrava, como se fosse hoje, do momento em que toda essa besteira começou. Quando as pessoas passaram a acreditar que ela fosse algum tipo de sensitiva, com poderes paranormais. Na época ela recém tinha completado 14 anos e estava passando o verão na casa de uma amiga.

     Uma tarde, quando não havia nada de interessante para fazer, decidiram realizar uma “sessão espírita”. Márcia, Ana, Renata, mais a Luíza – dona da casa – escondidas dos pais, fecharam-se no quarto, acenderam uma vela branca e em uma folha de caderno escreveram a palavra “SIM” e em outra a palavra “NÃO”. A objetividade era necessária porque, segundo Ana, os “espíritos” não gostavam de muita conversa.

     Depois de tudo pronto, as quatro meninas sentaram-se no chão, formando um círculo, com as duas folhas de papel e um copo de requeijão vazio, virado de cabeça para baixo, bem no centro. Nervosas, colocaram as pontas dos dedos encostadas na beira do copo.

     No início foi meio difícil acomodarem-se, pois eram quatro pares de mãos tentando tocar um espaço onde mal cabiam as mãos de Renata, a mais corpulenta das quatro. No entanto, entre gritinhos e risadas nervosas conseguiram se ajeitar, permanecendo relativamente imóveis.

     Na hora da primeira pergunta, Luíza pediu a vez. Todas concordaram. Afinal, o quarto e o copo eram dela:

      - Espíritos! – chamou Luíza – Eu vou me casar?

     O copo deu uma tremida, por conta de um soluço impróprio de Renata, mas não saiu do lugar. Luíza fez beiçinho:

      - Meu Deus! Eu vou ser uma solteirona! – gemeu angustiada.

     - Para, Luíza – disse Ana, a entendida em espiritismo. – Essa pergunta é muito besta. Deixa tentar algo mais objetivo.

      Respirando fundo todas se acalmaram e sem ninguém dizer nada, voltaram a colocar as pontas dos dedos na beira do copo.

      - Queridos espíritos! – disse Ana, com voz dengosa. – O Paulinho, meu colega de escola, aquele que senta atrás de mim, o loirinho, de olhos azuis, gosta de mim?

     O olhar de todas fixou-se no copo e com a respiração presa aguardaram a resposta. Um, dois, três, quatro, cinco segundos e nada. O copo não se mexeu um milímetro: nem para o lado do “SIM” e nem para o “NÃO”.

     Aturdidas e decepcionadas, decidiram abandonar a brincadeira. “Aquilo tudo era uma besteira mesmo”, diziam, enquanto se levantavam. No assoalho, o copo e as duas folhas de papel ficaram esquecidas nas mesmas posições.

      Quando já estavam, há alguns minutos, discutindo sobre o último capítulo da novela, ouviram um grito. Era Renata.

      - Meninas! Olha ali! – Assustada, ela apontava para o chão.

O copo havia se movido. Agora estava bem na frente da palavra “SIM”.

      - Quem mexeu nele? – perguntou autoritária Luíza, a dona do quarto e do copo.

Ninguém respondeu. A expressão de susto havia sido substituída pela de medo.

      - Gente, quem foi? – quis saber Ana. – Com essas coisas não se brinca – explicou séria.

Silêncio. Absoluto. Até que Márcia abriu a boca.

      - Eu perguntei uma coisa, mas foi dentro da minha cabeça. Eu não cheguei perto do copo. Juro por Deus!

As quatro meninas se olharam. Ela não podia ter mexido no copo, pois estava sentada na cama, bem longe dele. Não tinha como Márcia passar por elas sem ser vista.

      - Tudo bem – disse Ana. – Alguém perguntou mais alguma coisa depois que a gente parou? Porque eu, com certeza, não perguntei.

      Duas cabeças se moveram simultaneamente em negativa. E como se tivessem combinado, três pares de olhos castanhos, muito abertos, voltaram-se para Márcia.

      - Foi nesse maldito dia que essas bobagens começaram – Márcia pensou. – Devia ter ficado de boca fechada!

      No entanto, o que veio a seguir era inevitável.

       - O que você perguntou? – disseram as três amigas juntas.

      Márcia engoliu a saliva com dificuldade. As mãos começaram a suar e a cabeça a doer. No assoalho o copo continuava imóvel diante da palavra “SIM”.

      - Vamos, criatura, responde! – insistiu, nervosa, Renata.

      - Eu só perguntei se esse negócio de espíritos era verdade. Juro! Foi só isso!

      Daquele dia em diante as amigas começaram a achar que Márcia tinha algum tipo de “superpoder” e a toda hora a enchiam de perguntas que ela se negava a responder. O pior era que, muitas vezes, Márcia sabia a resposta, mas ficava quieta. Esse “superpoder” havia se tornado um enorme peso sobre os seus ombros.

      Contudo, houve uma vez, muito tempo depois, quando todas já estavam na faculdade, que, de novo, Márcia, esquecendo a promessa de ficar calada, abriu a sua imensa boca. Foi na época que o pai de Ana adoeceu. O pobre homem já tinha feito mil exames e nenhum médico sabia dizer a causa do seu mal estar. O coitado parecia um esqueleto ambulante.

       As quatro amigas combinaram de ir a um cinema e depois comer uma pizza. O objetivo era meio óbvio, desviar a atenção da Ana dos problemas de saúde do pai.

       A noite começou bem. O filme uma comédia romântica com a qual todas se divertiram. A pizzaria era um lugar legal e a pizza, ótima. Enfim, uma noite só de meninas que tinha tudo para terminar como começou: bem. Até que Ana falou do pai e do quanto estava preocupada com ele.

       Luíza e Renata fizeram o que tinham de fazer: falaram todas aquelas coisas positivas – “Teu pai vai melhorar” ou “Não é nada, só uma indisposição passageira” – para animar a amiga. A única que ficou quieta foi Márcia e Ana, infelizmente, percebeu.

       - Márcia – chamou Ana, num sussurro. – Fala, por favor.

       E Márcia, sem pensar, fez o que a amiga pediu:

       - É no intestino, Ana. Obriga os médicos a examinarem com mais atenção. Talvez ainda dê tempo.

       Em torno da mesa, no meio da pizzaria movimentada, o silêncio foi absoluto. De repente, Ana pegou a bolsa e, sem nem mesmo se despedir, correu direto para o carro. Seis meses depois estavam todas no enterro do pai de Ana.

       Depois daquele dia, Márcia jurou que nunca mais abriria a boca. Nunca mais permitiria que essa “coisa” a dominasse de novo. Nunca mais. Até agora.

      - Fala comigo, Márcia. Eu já disse que aguento – repetiu Luíza apertando nervosa a mão da amiga.

     Recuperando a calma, Márcia olhou para Luíza e com toda a tranquilidade que conseguiu reunir respondeu:

      - Eu não estou sentindo nada, Luíza. Absolutamente nada.

      O suspiro de alívio de Luíza foi audível. O corpo da mulher, grávida de sete meses, relaxou e um sorriso agradecido apareceu em seu rosto.

      - Obrigada, Márcia. Se você diz, eu fico mais tranquila. Sabe como é mulher grávida, qualquer coisa deixa a gente apavorada.

      As duas se abraçaram na frente do shopping e cada uma foi em um sentido diferente. Luíza com uma expressão feliz e Márcia muito séria.

      Enquanto caminhava Márcia tinha de fazer um esforço tremendo para não tapar os ouvidos. Sabia que era bobagem porque o que ela escutava não vinha de fora, mas de dentro da sua cabeça.

      - Você precisava ter avisado a Luíza – dizia a voz. – Ela precisa se preparar para a criança que está chegando.

      E junto com a voz, sua mente foi invadida por imagens de um bebê de olhos amendoados, dedos curtinhos e nariz achatado. Mas, Márcia se negava a ouvir e ver. Acelerando o passo, continuou o seu caminho.

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Margarete Hülsendeger

Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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