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Contos

 

NEGRAS ESQUINAS

Margarete Hülsendeger

     Samir estacionou o carro na esquina. Sem pressa, tirou um cigarro do maço que trazia no casaco. Não pretendia acendê-lo, estava tentando parar de fumar. No entanto, sentir o gosto da nicotina sempre lhe dava algum alívio.

     A vida, a sua vida, estava uma merda. As dívidas de jogo se acumulavam e ele não tinha como pagá-las. As horas extras na delegacia eram apenas para cobrir o pagamento da pensão da ex-mulher. Se não soubesse, pelos anos de prática, que crime perfeito não existia, já a teria matado há muito tempo. Nunca houve muito amor entre eles e depois da morte do filho as coisas só pioraram. A merda é que nem mesmo depois do divórcio conseguiu se livrar dela. Era obrigado a depositar todo o mês parte do seu salário na conta daquela vaca e o pior é que ela só sabia reclamar e exigir cada vez mais.

     Na porta do hotel barato, do outro lado da esquina, um casal se despedia. O homem dava um último beijo na boca da mulher enquanto apertava descaradamente a sua bunda. Quando, enfim, ele foi embora, Samir percebeu que a mulher não conseguia esconder a cara de nojo. Disfarçando, ela ajeitou melhor o vestido e o cabelo e começou a andar pela calçada em frente ao hotel.

     Samir chamou a sua atenção ligando e desligando os faróis do carro algumas vezes. Assim que a mulher reconheceu o Maverick preto, caminhou sem pressa até ele.

     - Noite, Samir – disse ela, com a voz rouca.

     - Onde você pensa que vai? – perguntou brusco.

     -Ora, estou trabalhando. Vou atrás de mais clientes.

     - Não se faça de idiota, você sabe muito bem qual é a nossa combinação. Me passa a minha parte. Agora.

     Cláudia olhou para o policial e quis dizer tudo o que tinha vontade. Que ele era um filho da puta explorador e um desgraçado de um corrupto. Mas, em vez disso, abriu um sorriso falso e tentou convencê-lo a fazer o que ela queria:

     - Samir, querido, eu ainda não terminei o meu turno. Se você esperar mais um pouco, dou a tua parte no fim da noite – enquanto falava fazia beiçinho e se inclinava na janela do carro para que ele tivesse uma vista completa dos seus seios.

     Samir ficou muito irritado.

     - Essa piranha pensa que sou burro. Pior. Está tirando sarro com a minha cara.

     Sem avisar, ele estendeu a mão pela janela e agarrou o braço da mulher torcendo-o com força:

     - Olha aqui, puta, o trato é me passar cinquenta por cento do que ganhas com cada cliente. Não tenta me enganar que eu acabo com a tua raça.

     Cláudia gemeu de dor.

     - Velho, corno, filho da puta! – pensou. Se ele lhe quebrava o braço, não poderia trabalhar. Assim, estampou no rosto outro sorriso falso e disse com uma voz melosa, disfarçando a dor:

    - Tá bom, Samir, só queria ajudar. Afinal, não precisa ficar dentro desse carro fedido a noite toda. Podia ir para casa e depois, recolher a féria da noite.

     Samir torceu um pouco mais o braço de Cláudia e depois o soltou.

     - Chega dessa conversa, me passa o dinheiro de uma vez, piranha.

     Devagar, Cláudia se endireitou e sem tirar os olhos de Samir, pôs a mão dentro da bolsa. Ficou com a parte do dinheiro que lhe cabia e o resto entregou ao policial.

     - Isso mesmo, Cláudia, assim que eu gosto. Uma menina bem mandada – disse Samir, sorrindo debochado, enquanto recontava o dinheiro.

     - Posso voltar ao trabalho? – perguntou Cláudia, esfregando o braço para diminuir a dor.

     - Claro! Vou ficar aqui te esperando. Sabes muito bem que faço isso pra te proteger – respondeu Samir sem olhar no rosto da prostituta.

     - Sei – disse Cláudia, bufando de tanto ódio. Como queria que aquele homem desaparecesse da sua vida.

     Com Samir ficando com metade do seu dinheiro, nunca ia conseguir economizar o suficiente. Precisava deixar aquela vida. Desde a morte do marido, sua existência se resumia a apenas sobreviver. Um miserável dia de cada vez. Como odiava tudo aquilo. Respirando fundo e escondendo a raiva, deu uma última olhada no homem dentro do carro e, com pressa, se afastou dele.

     Com o dinheiro no bolso, Samir sentia-se um pouco melhor. Tinha esperanças que com os “serviços” de Cláudia, mais a participação na venda das drogas, pudesse saldar a sua dívida com o maldito “corretor”. Ontem ele lhe enviara uma mensagem dizendo que não esperaria nem mais um dia. Bobagem! Samir não acreditava nessas ameaças. O filho da puta não era louco de se meter com um policial! Além disso, quando amanhã apostasse no seu cavalo premiado duplicaria, não, triplicaria, o dinheiro que lhe devia.

     Cláudia já estava na outra calçada quando ouviu o barulho de um carro se aproximando. No início, pensou que Samir havia desistido da ideia de esperá-la e estava indo embora. No entanto, viu que o Maverick permanecia no mesmo lugar e que uma camionete Tucson estava se aproximando com os faróis desligados. Curiosa, ela parou.

     O vidro da camionete foi abaixado e houve algum tipo de conversa entre Samir e os ocupantes do outro veículo. Ela não conseguiu escutar o que diziam, mas de repente, percebeu que um cano preto saia da janela da Tucson e disparava vários tiros contra Samir.

     Cláudia ficou parada, tinha medo de se mover e ser vista. Contudo, o responsável pelos disparos simplesmente fechou a janela e a camionete seguiu caminho. A Tucson passou ao seu lado, mas ela não pôde enxergar os ocupantes. Os vidros eram escurecidos.

     Quando a camionete, finalmente, virou a esquina, Cláudia saiu da sua imobilidade e correu em direção ao Maverick. Com nojo, ela constatou que Samir tinha se convertido em uma massa sanguinolenta. A maioria dos tiros foi dirigida contra o peito, mas o rosto também havia sido atingido. Sem pensar muito,         

      Cláudia tomou uma decisão. Puxando um lenço da bolsa, e cuidando para não se encostar em nada, o usou para abrir o casaco de Samir. Quando encontrou o dinheiro, com toda a calma que pôde reunir, o retirou e o guardou dentro da bolsa.

      Cláudia ainda permaneceu alguns momentos olhando para o corpo do velho policial. Foi arrancada desse devaneio quando ouviu o barulho das sirenes. Sem esperar mais, correu para longe do carro e daquela esquina. No entanto, antes de perder de vista o Maverick preto teve um último pensamento:

     - Bem feito, filho da puta! Viveu e morreu como um desgraçado! Bem feito!

     Ajeitando, novamente, o vestido e o cabelo saiu rebolando pela rua em busca de mais clientes. Pela primeira vez sentia algo que se assemelhava a liberdade.

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Margarete Hülsendeger

Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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