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Contos

QUANDO O TELEFONE TOCA

Margarete Hülsendeger

Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais.

Florbela Espanca

     No quarto, Clarice andava de um lado para o outro, balançando a cabeça como se não acreditasse no que estava acontecendo. Afinal, duas semanas haviam passado e ela já tinha perdido toda a esperança. Até aquele momento. Até atender o telefone.

     Decidida, deixou as dúvidas de lado e correu para o quarto, sem perceber que no caminho esbarrava na cadeira, derrubando no chão as roupas recém-passadas. Queria apenas chegar até o guarda-roupa, pois era ali que guardava o seu pequeno e extravagante segredo.

     Empurrando tudo que estava na sua frente, não deu importância à bagunça que criava ao seu redor. Ofegante alcançou a caixa retangular escondida no fundo do armário e, segurando-a com cuidado, levou-a até a cama. Durante alguns minutos, só teve coragem de olhá-la. Depois, respirou fundo e desfez o laço que prendia a tampa. Lá dentro, um vestido vermelho, caprichosamente dobrado, estava à sua espera. Experimentou a mesma emoção quando o viu pela primeira vez na vitrine da loja. Nunca o havia usado. Assim, com reverência retirou-o da caixa e, esticando os braços, foi vestindo-o bem devagar.

     Ao olhar-se no espelho, não reconheceu a imagem refletida. “Sou eu?” se perguntou. Sabia que sim, mas era difícil de acreditar; não, de aceitar. Como era possível que aquela outra mulher, fitando-a de dentro do espelho, pudesse ser ela? Sorriu para o reflexo e uma sensação boa foi se espalhando pelo corpo, até ela sentir que seria capaz de desafiar o mundo.

     E era exatamente assim que Clarice interpretava o telefonema daquela tarde: um desafio. Ao longo dos anos, ela havia se transformado em uma mulher desconfiada, medrosa e insegura. Durante todo esse tempo estivera evitando qualquer tipo de contato, pois temia o sofrimento e a decepção. Reconheceu, entretanto, estar farta de tudo isso. Havia chegado o momento de tentar algo novo, sair da toca, ser, enfim, alguém diferente dela mesma.

       Envolta nesses pensamentos, terminou de se arrumar. Pôs um batom vermelho que combinava perfeitamente com o vestido. Passou perfume atrás das orelhas, entre os seios e nos pulsos. Concluiu retirando de outra caixa mais um de seus “pequenos e extravagantes segredos”: um sapato de salto muito alto. Olhando-se mais uma vez no espelho, aprovou o que viu. Estava pronta.

     O próximo passo era sair sem ser percebida. Se os pais a vissem, vestida e perfumada daquele jeito, iriam fazer perguntas que ela não estava disposta a responder. Não se submeteria a nenhum interrogatório. Não era mais criança e não precisava dar explicações a ninguém.

     Sentindo-se uma menina travessa, esgueirou-se pela casa, sempre com o cuidado de não sujar ou amarrotar o vestido. Queria estar perfeita para o encontro que a aguardava. Na rua, correu até a esquina, sem olhar para trás.

     Quando, finalmente, Clarice conseguiu que um táxi parasse, cedeu ao desejo de lançar uma última olhadela em direção à casa. Um arrepio de contentamento percorreu o seu corpo e, com um sorriso, acenou como se estivesse despedindo-se de alguém.

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Margarete Hülsendeger

Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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