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Contos

Reviravolta

Margarete Hülsendeger

Não entendo de sonhos. Mas este me parece

um profundo desejo de mudança de vida. Não

precise ser feliz sequer. Basta ano novo. E é

tão dificil mudar. Às vezes escorre sangue.

Clarice Lispector

 

       Clarice fitava o teto esforçando-se por manter os olhos abertos. Não queria dormir. Não agora, quando tinha tanta coisa na cabeça. Precisava organizar as ideias, entender o que estava lhe acontecendo.

       Quando saiu escondida de casa sabia que se aventurava em um território desconhecido, um caminho totalmente diferente daquele com o qual estava acostumada. Na hora não quis pensar. Ao contrário. Mergulhou de cabeça nessa aventura, sem medir as consequências. Há algum tempo cansara-se de ser ela mesma, queria mudar, romper com os laços que a uniam à velha Clarice.

       Inquieta, moveu-se na cama com cuidado. Virando a cabeça no travesseiro viu o vestido vermelho jogado na cadeira. “Meu pequeno e extravagante segredo”, pensou, sentindo um calor gostoso percorrendo o seu corpo. Gemeu baixinho.

       Depois de deixar a casa foi direto para o local do encontro: um restaurante simples em uma rua desconhecida e pouco movimentada. Estava nervosa, insegura, quis fugir, esquecer toda aquela loucura, voltar a ser a  previsível e tola Clarice. No entanto, sua relutância durou apenas alguns segundos. Não havia volta. Assim, sem pensar mais, seguiu para o restaurante.

       Ele fora gentil, educado e atento. Não a apressou, dando-lhe o tempo necessário para absorver a nova situação. Manteve o olhar fixo no dela durante os poucos minutos que permaneceram sentados no restaurante. Os gestos, sutis e carinhosos, eram carregados de uma eroticidade desconhecida para ela. Afinal, Fábio nunca a havia tratado daquela maneira. Para ele, tudo sempre fora formal, sem sentimento ou entrega.

       Durante anos, Clarice tentou convencer-se de que o amor fosse assim, beijos rápidos, corpos movidos apenas por uma espécie de instinto animal, sem nunca existir uma verdadeira intimidade. Fábio sempre dizia que o amor era para os ingênuos e ignorantes. E ela, com medo de perdê-lo,  aceitou essa ideia, tornando-a uma verdade com a qual aprendeu a conviver.

       Agora Clarice percebia o quanto fora idiota e como tinha sido fácil enganá-la. Fábio soube aproveitar-se de seus maiores temores. Mas tudo havia mudado, ela não era mais aquela mulher inocente. Hoje, graças ao sofrimento e à vergonha de se saber traída, compreendia que o amor não era nada daquilo. Nada! A velha Clarice, finalmente, morrera.

       Cansada, sentiu os olhos ardendo, talvez fosse hora de dormir. Foi nesse instante, quando ainda estava entre o sono e a vigília, que percebeu a carícia em seu seio. Por debaixo do lençol amassado, a mão quente lentamente descia, movendo-se pelo abdômen, depois a coxa até chegar ao seu sexo. Sem querer, gemeu alto.

       Virando a cabeça no travesseiro, Clarice viu que ele a olhava. Era o mesmo jeito intenso de olhar do restaurante. Os lábios curvaram-se em um sorriso e uma pergunta silenciosa foi formulada. O sono e o cansaço desapareceram no mesmo instante e um arrepio de prazer cortou a sua respiração. Clarice esqueceu o passado, afastou as dúvidas e, sem racionalizar mais, aconchegou-se aquele corpo quente e forte.

       Na cadeira, ao lado da cama, como única testemunha, o vestido vermelho amassado parecia encará-los.  

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Margarete Hülsendeger

Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

 

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