A dor que come por dentro
Margarete Hülsendeger
"Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das
coisas que foram sonhadas e não cumpridas"
Carlos Drummond de Andrade
Deitada na cama, Clarice seguia com o olhar os movimentos do homem. Diante do espelho rachado, ele se demorava, ajeitando a roupa e o cabelo.
A sintonia que tanto a encantara e seduzira já não era a mesma. Algo estranho, algo que ela não conseguia entender, estava se intrometendo entre eles. Sentiu medo, mais do que isso, sentiu a sombra da “velha Clarice” à espreita, aguardando o melhor momento para dar o bote. Ela não permitiria, agora era outra pessoa. “A ‘velha Clarice’, estava definitivamente enterrada”, pensou inquieta, remexendo-se na cama.
- O que foi dessa vez? – ele perguntou brusco, sem tirar os olhos do espelho.
Clarice se encolheu, cobrindo-se ainda mais com o lençol. O tom impaciente da pergunta fez com que se sentisse envergonhada, como uma criança pega fazendo travessuras.
- Nada – respondeu. – Só estou admirando a vista – disse em tom de brincadeira.
Um sorriso, entre malicioso e divertido, surgiu no rosto do homem.
- Ainda bem. Não aguento mais as tuas neuroses, principalmente, essa última – disse, ficando sério, enquanto a olhava pelo espelho.
“Ah! Então é isso!”, e o pensamento veio acompanhado de uma sensação dolorosa. Teve de se controlar para não gemer alto.
- Eu não disse que você “tinha” de ir comigo a festa. Na verdade, eu apenas fiz uma sugestão. Não quero te forçar a nada.
Satisfeito com o que via no espelho, ele se voltou de frente para ela e com uma calma estudada foi se aproximando lentamente da cama.
- Melhor assim. A nossa relação está muito bem desse jeito. Não vamos complicar as coisas entre nós. Não há necessidade. Você não acha?
Enquanto fazia a pergunta, sentou-se na beira da cama bem próximo dela. Depois com uma mão acariciou o seu rosto e com a outra foi puxando para baixo o lençol que a cobria. Clarice susteve a respiração, antecipando o que viria depois. Contudo, para sua surpresa e desapontamento, ele não seguiu adiante. Ao contrário. Levantou-se e, com as mãos frouxas ao lado do corpo, permaneceu encarando-a de cima, com uma expressão satisfeita. Clarice sentiu o rosto arder. E, novamente, aquela sensação odiosa de vergonha, como se estivesse fazendo algo de muito errado.
- Ainda bem que nos entendemos – disse ele. – Gosto das coisas claras entre nós. – Dando-lhe um beijo rápido na testa, deu meia volta e saiu.
Sem conseguir se mover, Clarice viu a porta sendo fechada. O corpo latejava e a cabeça lhe dava voltas. Começando a tremer, cobriu-se até o pescoço e fechou os olhos. Infantilmente, quis acreditar que tudo aquilo era um sonho. Não. Um sonho que virara pesadelo.
“Ele não me ama”. Essa certeza a atingiu como um golpe, bem no meio do peito. Clarice quis gritar, mas o grito ficou entalado na garganta.
Olhou à sua volta. O espelho rachado, os móveis velhos, os lençóis ásperos roçando seu corpo nu. Ontem à noite esse quarto lhe parecera mágico, saído direto dos seus sonhos mais loucos. Como era possível que em tão pouco tempo tudo tenha mudado?
A claridade que entrava pela janela não conseguia mais encobrir ou esconder a verdade e a consciência disso a estava matando. Era uma dor imensa, maior do que qualquer outro sentimento que houvesse antes experimentado.
- Ele não me ama - voltou a repetir, dessa vez em voz alta.
As palavras ricochetearam nas paredes descascadas. Clarice trouxe o travesseiro que ele havia usado para junto do rosto. Inspirou com força. E sem se conter mais, abafou um grito cheio de agonia e desespero.
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Margarete Hülsendeger é
Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".
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