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Contos

Os dois

Margarete Hulsendeger

                                                   O amor é grande e cabe  nesta janela sobre o

                                                   mar. O  mar   é grande  e  cabe na cama e no

                                                   colchão  de amar. O amor é grande e cabe no

                                                   breve espaço de beijar.

                                                                         Carlos Drummond de Andrade

     Quando S e P se conheceram eram muito jovens. Recém haviam ingressado na universidade, e estavam cheios de sonhos e planos para o futuro. Era, no entanto, um pouco diferentes dos outros jovens. Nunca tinham namorado e nem mesmo beijado. S e P não sabiam explicar como isso aconteceu. Talvez, por essa razão, a coisa toda entre os dois tenha começado meio aos trancos e barrancos. Pura falta de experiência.

     Para começar, P era bem diferente dos sonhos de príncipe encantado que S acalentava desde menina. Ele não era bonito e nem muito "elegante". Ao contrário. S, por sua vez, também não era o ideal de menina que P imaginara. Tímida, séria e muito, mas muito complicada, sua cabeça era uma mixórdia que poucos se arriscariam a destrinchar.

     No entanto, como P estava imbuído do espírito de um verdadeiro conquistador não se intimidou e foi à luta. Elaborou uma estratégia que, segundo ele, tinha tudo para dar certo. A marcação seria cerrada, não deixando para a sorte a decisão do seu destino. Afinal para P, S era, com certeza, o seu caminho ou, quem sabe, o seu descaminho.

     Assim, P passou a aparecer em todos os lugares que S costumava frequentar. Na saída de casa para o trabalho lá estava ele oferecendo-se como companhia; na faculdade sempre dava um jeito de estar por perto; no bar, após as aulas ou na festa de final de semana, aparecia mesmo não conhecendo ninguém, pois, segundo ele, "estava passnado e tinha resolvido dar uma espiada no ambiente". Era marcação cerrada mesmo!

     Enquanto isso, S a tudo assistia, achando P muito esquisito. Contudo, o mais estranhluo era que apesar do medo natural de estar sendo assediada por um possível maluco, ela gostava do jogo de gato e rato que passou a existir entre eles. S deixava que P desse dois passos na sua direção, mas recuava quatro, sempre mantendo uma distância discreta e segura entre os dois. Era como os passos de uma dança, "dois passinhos para lá, dois para cá"

     A família de S, no início, se surpreendeu com "essa dança", mas, depois, acabou entrando no ritmo. Quando P ia procurá-la em casa, ela mandava dizer que não estava. Dois passinhos para lá. Quando ele ia embora S pedia que alguém fosse correndo verificar se P não havia ficado muito triste. Dois passinhos para cá. Era um ritmo suave, mas constante.

    Entretanto, como ninguém é de ferro, um dia P acordou determinado a mudar o ritimo de suave para intenso, acabando de vez aquela história de "passinhos para lá e para cá". Decidiu que havia chegado a hora de ser mais audacioso. Assim, respirou fundo, ergueu a cabeça, estufou o peito e convidou S para "pegar um cineminha".

    S a princípio ficou sem jeito e sem fala. Quis recusar, mas concluiu que, talvez, fosse o momento de começar outro tipo de "dança". E, assim, lá se foram os dois para o "cineminha", S de roupa nova e P, bém... P foi de P Se perguntarem sobre o filme, nenhum dos dois irá lembrar, pois para eles a tal da "dança" havia assumido outro ritmo, do tipo lento e próximo (muito próximo!).

     Ao sairem do cinema seu relacionamento atingira outro nível. Nível no qual os beijos eram não só permitidos, mas obrigatórios. E essa era, infelizmente, questão delicada para os dois; afinal nenhum deles havia sido beijado, pelo menos não da maneira que eles sonhavam ser beijados um dia. Portanto, a insegurança e o nervosismo instalaram-se entre os dois, fazendo-os pensar no que fariam quando o momento chegasse.

     Quando a situação estava prestes a fugir do controle, S deu a solução para o problema. Na primeira oportunidade, quando os olhos estavam presos um no outro e os corpos tão próximos que nem um fio dental passava entre eles, S, vencendo a timidez, puxou P para um primeiro e experimental beijo. Não um beijinho, afinal, S não estava para brincadeira, mas um beijo completo - pelo menos era o que ela achava - como muitas vezes havia sonhado e invejado. P surpreso, mas feliz, alegremente correspondeu. Maravilhados constataram que o nariz não atrapalhava e a língua não só colaborara, mas era essencial.

     E foi assim que tudo começou para S e P. O que aconteceu depois? Bem... Essa é outra história.

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, autora de E todavia se move (Epur se muove) publicado em 2011 pela ediPUCRS. Colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".


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