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Contos

UM PEQUENO E EXTRAVAGANTE SEGREDO

Margarete Hülsendeger

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amar, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Mario Quintana

 

Clarice não conseguia dormir. Angustiada, resolveu levantar da cama e abrir uma janela. Na rua, a escuridão era apenas interrompida pelos postes de luz acessos. O ar da noite era úmido, pesado, prenúncio de uma chuva que não tardaria a cair. Respirando fundo algumas vezes, apoiou-se na janela, deixando-se levar pelos pensamentos que, assumindo vida própria, voaram para longe.

Pensou no tempo em que se sentira a mulher mais feliz do mundo. Uma época cheia de fantasias e certezas românticas. Lembrava-se, também, do quanto suas amigas a achavam ridícula, principalmente, por alimentar a ideia antiquada de querer um marido, filhos e uma casa só sua. Mas Clarice nunca se importou com essas opiniões ou mesmo com o fato de todos a acharem uma tola. Até que era tarde demais.

Um gosto amargo na boca e um aperto doloroso no peito fez com que fechasse os olhos. Reviu mentalmente o dia em que Fábio a procurou querendo ter uma conversa séria. Inocente, supôs que querida tratar de algum detalhe, ainda não resolvido, do casamento.

Tudo aconteceu naquele mesmo quarto, diante daquela mesma janela. Fábio quis ficar em pé; além de nervoso, parecia estar com medo. Quando, enfim, ele conseguiu falar, e toda a verdade veio à tona, Clarice compreendeu o quanto havia sido cega e o quanto seus sonhos foram ridículos. Não havia perdão para a tamanha ingenuidade e burrice. Como Fábio pôde enganá-la por tanto tempo era algo que não conseguia entender e, muito menos, superar. Tornou-se a piada da qual todos riam.

Clarice esforçava-se, todo o santo dia, para esquecer a vergonha e o constrangimento. Porém, em noites como esta, era difícil manter os pensamentos sob controle. As lembranças insistiam em ressurgir, agindo como fantasmas, prontas para assombrá-la.

Entretanto, estranhamente, na época não derramou uma única lágrima. Quem a visse não acreditaria na angústia que lhe apertava o coração. Clarice era assim, discreta, sempre preocupada com as aparências. Ela tinha decidido não demonstrar seu desespero, não serviria de espetáculo para ninguém. Assim, não houve “crise nervosa” como todos esperavam e até torciam. Mas, algo aconteceu. Clarice comprou um vestido.

De um vermelho vivo, extremamente provocante e sensual, era óbvio que fora feito com um único propósito: seduzir. Quando Clarice o viu, quis tê-lo. Até hoje não sabia, com certeza, o que a motivou. Desculpou-se, atribuindo essa “compra excêntrica” ao seu estado emocional perturbado. O vestido tornou-se desde aquele dia o seu “pequeno e extravagante segredo”.

Agora, nesta noite, diante da janela aberta, voltou a pensar nele. Estava guardado bem no fundo do guarda-roupa, próximo ao outro vestido, o branco. Ambos representantes silenciosos de dois momentos de sua vida, feitos de cores, tecidos, modelos e emoções diferentes. Qual deles usaria primeiro? Ela não sabia. Aliás, evitava pensar no assunto, pois a simples lembrança dos dois vestidos, guardados lado a lado, só lhe causava aflição e sofrimento.

Finalmente, sentiu o cansaço tomar conta do seu corpo. Espreguiçando-se, fechou a janela. No entanto, antes de ir para cama foi até o guarda-roupa. A mão trêmula aproximou-se do trinco e num gesto nervoso abriu a porta fechada.

Seus olhos procuraram as caixas. Elas continuavam no mesmo lugar. Belas, embrulhadas nos seus respectivos papéis de presente, e, ao mesmo tempo assustadoras. Sentiu medo.

O temor despertado pela caixa com o vestido branco era resultado das lembranças dolorosas que ele lhe despertava. Lembranças de um tempo no qual ainda era uma mulher ingênua e confiante. Um tempo de sonhos românticos e sem sentido. Contudo, o medo maior vinha da outra caixa, daquela que guardava o seu “pequeno e extravagante segredo”.

 Assustada, Clarice recuou, fechando com pressa o armário. Quem sabe um dia. Quem sabe em outra vida. Era hora de voltar a dormir.

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Margarete Hülsendeger

Cronista e contista gaúcha, colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra".

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