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Contos

A casa e a boneca

Margarete Hulsendeger

     Desde muito pequena, Laura sentia medo daquela casa. As suas janelas lembravam bocas abertas, com as persianas parecendo dentes quebrados. Quando havia vento, elas batiam e batiam, tornando o seu aspecto ainda mais assustador. A pintura há muito se descascara e no lugar dela apareciam não só os tijolos, mas também o cimento que os unia.

     Todas as manhãs, quando voltava da escola, ela passava em frente à casa. Muitas vezes havia desejado entrar; contudo, nunca conseguira reunir coragem suficiente. A casa a assustava e sempre que pensava nela sentia um arrepio estranho percorrendo a espinha.

     Um dia, Laura e algumas amigas decidiram que já era hora de acabar com aquele mistério. Quando, na escola, os meninos ficaram sabendo, riram muito, pois consideravam as meninas covardes demais para encarar tal desafio. Foi o que bastou. Elas fizeram dessa aventura um caso de honra.

     No dia combinado, lá estavam Laura e suas amigas diante da tal casa. Levavam lanternas e até um terço, caso viessem a encontrar alguma alma penada pelo caminho. Estavam com medo, mas agora não havia maneira de voltarem atrás. Os meninos jamais as deixariam sossegadas se viessem a saber que elas tinham-se acovardado.

     Ao abrirem o portão, logo se depararam com o que devia ter sido um jardim. No centro dele, uma velha figueira mostrava toda a sua imponência. Pelo terreno, no entanto, muitas floreiras vazias e quebradas. As ervas daninhas haviam tomado conta de praticamente todo o terreno. Porém, num canto, perto do muro, ainda podia-se ver uma roseira, agora seca e sem vida.

     As meninas andavam com cuidado. Havia muita sujeira espalhada pelo chão. Chegando à porta de entrada, tiveram de subir uma pequena e antiga escada de pedra. Para surpresa de todas, a porta não estava trancada. Foi preciso apenas um pequeno empurrão para que ela se abrisse e pudessem, enfim, achar-se dentro da casa.

     Quando entraram, a primeira coisa que lhes chamou a atenção foi o cheiro. Não era só o fedor de mofo que impregnava o ar, mas outros, difíceis de identificar, tornavam a ambiente asfixiante e desagradável. Um vento gelado soprava por entre as frestas das janelas quebradas. Com as mãos trêmulas, elas ligaram as suas lanternas.

     O aspecto da casa era de total abandono. A pintura interna não estava em melhor estado que a externa. Manchas de bolor dominavam a maior parte das paredes. Eram nódoas grandes e pequenas que, em alguns lugares, assumiam as mais variadas e fantasmagóricas formas. Além disso, enormes rachaduras, parecendo veias abertas, tornavam o lugar ainda mais assustador.

     A sala era ampla e dela partia uma passagem que se comunicava com as demais peças da casa: dois quartos, uma cozinha e um banheiro. Além da sujeira, presente em todos os cômodos, não havia muito mais para se ver. Os antigos moradores, aparentemente, tinham deixado pouca coisa para trás. Desapontadas, resolveram por fim àquela aventura. Seus pais, com certeza, há essa hora, já deviam estar preocupados. Foi quando, na sala, num canto perto da janela, viram a boneca.

     Era uma daquelas bonecas antigas, com cabeça, braços e pernas de porcelana e o corpo de pano. O rosto fora pintado à mão e, apesar da sujeira, ainda podiam-se ver os olhos azuis e a boca vermelha. A boneca estava nua, como só podem estar as bonecas, sem nenhum pudor ou vergonha.

     As meninas olharam-se, ficando em dúvida sobre o que deviam fazer. “Porque os donos a tinham abandonado?”, se perguntavam. Decidiram, então, que não podiam deixá-la ali. Laura a segurou com cuidado, pois tinha medo que ela pudesse desmanchar-se em suas mãos. A boneca, assim como toda a casa, exalava um odor estranho.

     Elas já estavam prontas para dar por concluída a aventura, quando começaram a ouvir uma espécie de rumor. Ele vinha de todas as direções. Ao olharem para as paredes, perceberam assustadas, que as manchas de mofo – aquelas com formas estranhas e fantasmagóricas – estavam se movendo. Deslocavam-se na direção delas, como se quisessem envolvê-las em sua sujeira e fedor. Com medo, elas tentaram abrir a porta. Quando não conseguiram, começaram a gritar, pedindo socorro. Assustada, Laura jogou a boneca no chão; ela, agora, não tinha mais a menor importância.

     Mal o brinquedo tocou o solo, as manchas interromperam os seus movimentos. A estranheza da situação fez com que as meninas parassem com os gritos. Apavoradas e ofegantes, olhavam para todos os lados, tentando encontrar a origem do fenômeno. Como nada vissem, se apressaram em abrir a porta. No entanto, quando Laura quis recolher novamente a boneca, as manchas voltaram a se mover e o estranho ruído que as acompanhava recomeçou. Depois disso, não houve mais espaço para dúvidas ou vacilações. Largaram o brinquedo onde o tinham encontrado e saíram espavoridas de dentro da casa.

     Na rua já era noite. Nenhuma delas disse nada. O coração de todas batia descompassado, impedindo qualquer tipo de conversa. Ainda tentavam entender o que havia acontecido. Pensativas, retornaram para suas casas, certas que suas mães as estariam esperando com um castigo por terem chegado tão tarde. No entanto, antes de se despedirem, combinaram que não contariam nada a ninguém. Afinal, quem iria acreditar em manchas de mofo e bonecas fantasmagóricas?

     Enquanto isso, dentro da casa a boneca permanecia exatamente onde fora abandonada. Seu rosto de porcelana refletia a pouca luz vinda da rua e na parede, feito sentinelas, as manchas de mofo permaneciam imóveis em suas posições.

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Margarete Hülsendeger
Cronista e contista gaúcha, autora de E todavia se move (Epur se muove) publicado em 2011 pela ediPUCRS. Colabora regularmente com as revistas "Entretextos", "Virtual Partes"; os sites "Argumento. Net", "Portal Literal" e "Tiro de Letra

 


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