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Conto

                              UM DIA DE CÃO

                                                                                         Millôr Fernandes

           Chegou em casa pelas últimas. Não agüentava mais. Jogou a pasta no chão da sala, jogou-se ele próprio em cima do sofá sem nem tirar o paletó e, quando o filho entrou vindo da rua, estranhando ele ali, desolado, na semi-escuridão da sala, perguntou, assustado: “Que é que foi, papai, o senhor tem alguma coisa?”. Ele, pela primeira vez na vida desabafou, atirou tudo que tinha dentro de si em cima do garoto de oito anos, de olhos arregalados: “Ah, meu filho, coitado de teu pai: foi um dia terrível! Eu e a tua mãe, você sabe, ela te telefonou, logo de manhã assinamos o desquite. Eu esperava que o juiz mandasse dar a ela 6.000 por mês mas ele decretou 12.000 e eu ainda tive que pagar, na hora, todas as despesas do advogado, meu e dela: 83.000,73 cruzeiros. Assinei ali mesmo uns cheques pré-datados que ambos os advogados aceitaram.


        “Ao sair, batido, descobri, na rua, que meu carro tinha sido rebocado. Quando consegui localizar o carro na inspetoria, os desgraçados tinham, ao rebocá-lo, amassado toda a frente e quebrado a caixa de mudança. Mas disseram que é assim mesmo, que isso às vezes acontece. Paguei multa, reboque, seguro obrigatório atrasado, fiz novo exame de vista – de agora em diante vou ter de guiar com óculos – e deixei o carro na oficina, pra consertar.


         “Quando cheguei ao escritório soube que vão mesmo desapropriar o prédio por causa do metrô, tendo que me mudar em quinze dias. Minha secretária, grávida de seis meses, que só estava esperando essa decisão, demitiu-se na mesma hora.


         “Do laboratório, o médico telefonou e disse que tenho que tomar muito cuidado com a minha pressão porque, com minha diabete e um princípio de anemia, qualquer coisa no coração pode ser fatal. Liguei pro meu corretor pra vender umas ações a fim de pagar todas as despesas do dia, mas ele me disse, aborrecido, que a corretora tinha sofrido uma intervenção devido a inúmeras irregularidades, inclusive desfalques. Eu então resolvi não trabalhar mais – na verdade não tinha trabalhado nada – e vir para casa, mas não consegui nem um táxi porque começou a chover torrencialmente.


        “Vim a pé da cidade até aqui, embaixo da maior chuva, mas, quando cheguei aí na esquina, lembrei-me de que tinha esquecido as chaves no escritório. Aí eu não agüentei e comecei a chorar em plena rua. Ah, meu filho, foi o dia mais terrível da minha vida!”


         O menino, tristíssimo, perguntou apenas: “Mas, papai, quando é assim, por que é que o senhor não muda de canal?”


MORAL DA HISTÓRIA: A SALVAÇÃO ESTÁ NA TECNOLOGIA.

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Fonte: http://www.amoliteratura.hpg.com.br/millor1.htm

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