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Conto

 

O grande Antas

 

Flavio Luis Ferrarini

Meados de dezembro. Findo o ano escolar, meu pai prometeu que me levaria para conhecer o grande Antas.

– É só o tempo de terminarmos de capinar o parreiral.  Habilidosamente, porém, ele passou a explorar-me, convertendo a promessa em obediência.

– Ande com isso... Pegue aquilo... Vá buscar pasto para os bezerros... Apesar das tarefas, eu danava a correr, segurando a cabeça com as duas mãos como se ela fosse voar de tanto contentamento. Afinal, iria conhecer o tão falado rio das Antas. Passou o Natal e veio o Ano Novo. E a promessa passou para a semana seguinte. E esta acabou adiada para a próxima. E a uva começando a pintar no parreiral. Enquanto isso, tonificava meus músculos no cabo da enxada para não dar vexame na hora de colher, do grande Antas, um peixe do tamanho de um homem com meu anzol de tostão.

– Amanhã, antes de romper o dia, iremos de uma vez por todas. – tornou a prometer meu pai. Perdi as horas mais macias do meu sono e nada dele despertar-me. Entreguei a Deus a minha sorte e, morto de sono e cansaço, adormeci. Clareou o dia.

– Acorda, filho, vamos cortar o pasto – era a voz grave de meu pai com a cara bem perto da minha orelha. O sonho rio das Antas ficou para as férias escolares do meio do ano. E as esperanças emagreceram e caíram com as folhas do outono e cobertas pela geada do rigoroso inverno. Julho já ia adiantado quando o inesperado aconteceu.

– Vamos logo – disse meu pai – arrume suas coisas e vamos pescar no Antas.  Não pude conter a euforia com o convite aguardado há tanto tempo. Feito um cão feliz ante a possibilidade do osso, saltitava e jogava os braços para o alto sem parar. Emendei-me em disparada até a horta, onde minha mãe semeava couve-flor. Dei-lhe a notícia com a voz embargada pela emoção.  Agarrada a cerca de pedra, aramada na parte superior, mamãe jogou-me na cara um rosário de recomendações:

– Tome cuidado com as caranguejeiras, os escorpiões, as cobras coral... Em seguida, enquanto batia a sola das botas empapadas de lama nas pedras da cerca, ordenou:

– Antes de partir, encha a dorna de água para os bezerros. De imediato, dei conta do que minha mãe me pediu. Subi o pequeno aclive em direção ao pomar, enchi o recipiente e voltei cheio de pernas. Aliás, fazia mais de meia hora que estava correndo de um lado para outro feito um carrinho de lomba desgovernado dos freios.

– Pegue suas coisas, vamos – gritou meu pai, debaixo do pé de cinamomo, colocando o cinto na mula que prendia os adornos à cela. Nem deu tempo de meu pai olhar para uma nuvem que eu já havia recolhido o velho boné surrado de guerra, o chinelo de tiras de borracha presas à sola com pequenos pregos, o bornal com o bodoque e o caniço. Eram perto das quatro horas de uma tarde que parecia passada a ferro. A paisagem assumia frisos e as árvores balançavam, penduradas nos cabides das nuvens. As colinas empinavam tetas adolescentes para os moradores celestes usarem como cotonetes. Logo tomamos a estrada que subia para o sul até a capela. Cruzamos por um campo lavrado e adentramos uma trilha na mata fechada que serpenteava o vale das grandes sombras. Meu pai ia na frente, embarcado na mula que imprimia um ritmo elástico à aventura. Eu ia atrás cantando por dentro, com os braços remando contra o vento e o rosto afogueado de animação. De vez em quando tinha que dar uns saltos para não perder-me dele. Finalmente iria conhcer o Antas e quase que meu coração se desrepresou de felicidade. Dentro de pouco tempo, ele iria conter o Antas em suas lembranças de infância.

– Pare de ficar andando em círculos igual a uma mosca tonta – advertiu meu pai que apressava a mula com a vime. Como deixar de olhar para tudo aquilo que estendia os braços e agitava lenços? O excesso de natureza era tanto que meus olhos não conseguiam conter, quanto menos guardar mantimentos nas prateleiras da memória. Mais de duas horas após a partida, pude sentir a brisa que vinha do Antas. Agora estava bem perto de ver, pela primeira vez em minha vida, o grande Antas. Pouco menos de cinco minutos de caminhada, na trilha que se quebrava em sucessivos cotovelos. Logo depois do enorme Ipê paralelo à trilha povoada de urtigas que mordiam meus pés nus, o Antas abriria seu roupão para mim.

– Ande depressa – pediu meu pai para emendar – estamos chegando. Mais meia dúzia de passos e o Antas apareceu inteiro diante dos meus olhos. Lá estava ele quase parado no movimento. Entretanto, não era o imenso lago com centenas de pequenas ilhas que eu estava esperando. Naquele instante compreendi: quase sempre o conhecido contribui para diminuir o imaginado.

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Flávio Luis Ferrarini é gaúcho, publicitário e escritor não necessatriamente nessa ordem. Colunista do jornal O Florense e do jornal Semanário de Bento Gonçalves, além de colaborar com vários sites literários. Tem seu nome estampado na Biblioteca Pública Municipal de Nova Pádua, sua cidade natal e foi escolhido como Patrono da 30º Feira do Livro de Flores da Cunha, onde reside. Publicou seu primeiro livro individual em 1985, abrindo uma série de quase 20 obras, nos gêneros de contos, crônicas, poesia, poesia em prosa, novela e narrativas infanto-juvenis.









 

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