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Contos

           O terrível coqueiral dos meus avós

                                                                        Marcelo Moraes Caetano

 

   Quando pequeno, eu jamais havia visto coqueiros compactuando. Em conjunto, nunca os vira pressionados, dialogando próximos, soprando-se uns aos outros, interagindo, pois sempre eram para mim livres como pássaros, cada um com sua gaiola própria. Sempre tão enfileirados — prateleiras da natureza. Supermercados de Deus (1). Coqueiro e gaiolinha sempre formaram um par sem fronteira. No caso dos coqueiros, suas jaulinhas individuais eram cercadinhos de arame grosso, buraco de terra e areia no asfalto em frente aos mares, sem afeto nem medo, mas extremamente obedientes: bem cercados para não fugirem dali, abrindo suas asas (que, nos coqueiros, ficam na cabeça) rumo ao tudo? Coqueiro para mim sempre fora uma extensão natural da orla, por exemplo, de Ipanema, Copacabana. Via-os apenas no litoral de uma ou outra praia, Brasil ou mundo, esparsos e pingados pela calçada com a conivência de quem não existe. Eles ou eu.

   Nunca tinha visto coqueiros em gado, e aquela visão me assustou.

   Não foi um susto causado pela novidade da coisa, que na verdade não era nova, pois os coqueiros já existem há mais de ... anos. Foi um susto causado pela coisa estranha, assim como podem causar susto — e causam — as menores coisinhas estranhas que (des)conhecemos. Como se conhecer coisas, quaisquer delas, não fosse de fato sempre estranho, pelo novo ou pelo velho... Estranho nunca é o objeto; estranho é sempre o contato.

   Há isto de insano em um coqueiral: a soma das solidões(2). Jamais ter visto coqueiros em sociedade me fez tremer ao vento, despentear-me de um modo como eu nunca supusera existir. Talvez fosse tarde...(3). Nunca vi um coqueiro tão próximo de outro. Nunca, portanto, foi tão necessário compreender a face individual de cada coqueiro. Só precisei compreender o individual porque ele se confrontava inadvertidamente com outro individual. Enquanto não havia aquele arrostar-se maciço, nada de mais ou de menos havia a se “compreender”: o coqueiro era o coqueiro e pronto.

   Mas, aqui, tão sociais... Jamais — que desilusão! — eu tinha visto coqueiros em sociedade. Tinha visto somente coqueiros em marcha estrita, organizados à luz da arquitetura, com metros matemáticos e precisos separando-os, em prisão, em quartel, coqueiros em ordem alfabética. Mas isso todo mundo sabe que não é sociedade, é simplesmente possibilidade. Obedecer pode ser social ou não.

   E no entanto: aqui. Ouvi meus avós dizerem que este coqueiral chegou ao Brasil antes do Brasil. Que — muito antes de o vento sofrer preso na teia que as folhas do coqueiro entretecem em armadilha honesta, pois o vento é a aranha da natureza — os coqueiros já eram
sementes vindas de África ancestral. Os coqueiros trazem os seus ventres em casa. Ventres sob encomenda, que os conseguem parir onde eles próprios (aconselhados pelo vento e pela água) decidirem nascer. O coqueiro é um nauta, e navega para pousar, conhece do mundo muito mais do que os pássaros!...

   Foram meus avós que me contaram. Ouvi deles que a conversa de um coqueiro pode ser escutada a quilômetros, desde que conheçamos o seu idioma. Diziam que a resposta está no vento. Impossível dizer, enfim, quem, à terra, chegou primeiro: o coqueiro ou o vento(4). Passado remotíssimo. Mais fácil falar da convivência atual, porque todo mundo sabe que é impossível falar do futuro sem conhecer o passado.

   Pois a lua vagarosa e alva penetra nos indivíduos coqueiros como olhos de gata ébria. Que de repente se cura do porre e resolve ser mãe.

   E eu aqui, de frente a essa massa compacta de coqueiros, cercado de tantos que é impossível contar, preso na perplexidade, em que o barulho das flores é tão macio quanto o terror do inesperado. Deve ser brisa marinha, pois percebe-se ao luar um ruído de sal e um torpor cálido, aroma de amanhecer. Só o mar sabe isso. Ninguém faz assim. Só parcialmente. Mas isso não conta.

   O mar não sabe ser parcial.

   Ao amanhecer, aquelas espigas impossíveis continuam possíveis. Eretas num comprimento fisicamente impróprio à manutenção da altivez. Um coqueiro é incômodo e silencioso. Vivem pela grande piedade e misericórdia de Deus, que é a — possibilidade. Quando Deus fez o mundo, colocou nele tudo muito impossível. Eram vulcões expelindo lava atmosférica, tanto metano, cinzas de amônia e gigantes meteóricos... Meu Deus! E tudo foi tomando um (des)concerto tal, que Deus decidiu: Faça-se a possibilidade!

   E por isso estou aqui. Só por isso.

   Tantas coisas impossíveis, e a possibilidade as faz tremer como varas de bambu.

   Ouço meus avós me dizerem sobre um tempo, lá atrás das eras, em que aquele coqueiral imenso era nada além de areia e vidro. Isto: vidro. Vidro em possibilidade, mas nem por isso menos vidro. Vidro em especulação, reflexo, espírito. E que essa areia toda formava monturos e corcovas macias como conchinhas antes do nascimento. Mas o que mais me surpreendeu foi:

   — A vida média de um coqueiro é de ... anos.

   Como assim, média? Pensei eu, assustado com a precisão com que se assume a vida. O que são esses anos todos, e por que exatamente vida?

   Não queria perguntar nada com aspas pois sei que isso ofenderia meus avós, tão justificadamente superiores a mim pelo hiato faraônico de uma geração. Quando alguém pula uma geração da tua, torna-se o teu Imperador, diziam-me eles ali.
    E eu tinha que acreditar, afinal de contas, eles nunca mentiram sobre nada. Eles mesmos não haviam conhecido a terra do coqueiral senão coberta por aquelas ondas de tronco maciço que se assemelham a obeliscos, aos quais se somam cabeleiras vastas em forma de amor.

   De amor? perguntei eu ao meu avô. De amor, respondeu-me e eu compreendi.

   Pois os coqueiros são tão presos...? e minha avó me acudiu respondendo. Você é que se sente preso. Porque você só pode achar do outro aquilo que você acha dentro de si, meu neto.

   Eu jamais compreenderei isto, mas por ora me resignava a observar a impassível paixão dos fazedores de semente de coqueiro(5). Ou melhor que isso: uma usina! Aquele coqueiral grande como o império bizantino me dava calafrios que subiam sem licença pela espinha dorsal, levando horas num sobe e desce que terminava apenas quando meus cabelos se arrepiavam para o vento(6). E desciam. Eu olhava mais e não podia compreender o tamanho nem o porquê. Olhava mais e via um hiato entre mim e eles. E achava-os presos de mais, quietos de mais, serenos de mais. Excessivamente de mais. Tinha medo daquele escuro. Medo de que clareasse. Medo de uma selva de lobos e horizontes perdida sem semente. Medo de temer o amor. Medo de ter medo, medo em espírito, portanto(7).

   Sei que não me apresentei a ti, que me lês com descaso, mas faço-o agora por mim mesmo, para me libertar desta angústia fatal.

   Meu nome é Zéfiro, tenho atualmente ... anos e me sentia extremamente aflito pela prisão de estar naquele aqui. Foi o aqui menos eu por que passei. Preso num gigantesco planeta global, e ainda assim confinado na fazenda de coco, neste martírio tropical. Neste eu a metros de mim. Olhava agora ao lado e vejo: coqueiros. São elevadas criaturas de Deus, e, por isso, são como eu. Somos todos iguais. Somos elevados, uns com mais, outros com menos altura, mas de resto iguais. Sou o reflexo do meu reflexo. Todos aqui éramos iguais.

   Eu, sim, um coqueiro.

   Meus avós, coqueiros, naturalmente, sempre disseram que minha família chegou aqui há ... milênios. Que antes de nós, só havia terra desolada, frouxa e pecaminosa(8). Mas neste ponto meus avós mentem, porque eu vi a terra antes de nos ver nesta circunstância sobre ela. Era uma terra tão terra quanto é agora.

   Isto ninguém me contou. Eu passei. E só o passado me afirma. Eu posso afirmar tudo, mas quem me afirma não sou eu exatamente. Eu não sou nem mesmo daqui.

   Digo isto porque eu fui um pássaro(9).

   Antes de estar coqueiro: eu era pássaro. E naquele aqui, naquele agora, percebi a imensidão da vida longa do coqueiro, que não acaba nunca, e é levada à mercê dos ventos e das águas, ainda mais terriveis na tempestade violenta e pré-histórica, em que a atmosfera rosna fios de cobre elétrico para todos os lados. O coqueirral é terrivel de mais numa tempestade. E ali era o caso de haver uma. Vastíssima tempestade inteligente. Via que meus avós se olhavam, sem contudo poderem abraçar-se, pois suas raízes não lho permitiam nada além do temor. Temor à água, temor à terra, temor à areia, temor ao raio, isso tudo que em resumo nomearam temor a Deus.

   Lembro o medo que senti. Meu Deus! Qual é o tempo da minha vida? Vida média não significa nada, muito menos possibilidade. Um coqueiro é algo tão preso pela perspectiva de um eu pássaro. Vida de quanto?! Ó tempestade!

   Os coriscos e as faíscas infinitas no céu é que significam isto: a tempestade!

   Um raio me atingiu. Verguei como a garça que voa. Eu, coqueiro, morri. Parti-me em dois, isto é só do que me lembro, e é bastante.

   Posso contar esta história por um único motivo: agora sou papel. Estou certo. Até quando, não sei... E viverei diante dos teus olhos como o reflexo do meu reflexo. Até que o pássaro reviva em mim(10).

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Notas:

1 Soldados do Universo inteiro.

2 Ou a subtração delas.

3 Demasiado tarde.

4 Muito mais difícil dizer quem vai deixar a terra primeiro.

5 Uma fábrica!

6 E subiam mais ainda.

7 O medo é uma das únicas entidades que podem ser espírito sem ser mais nada.

8 Os coqueiros também conhecem o pecado.

9 O problema não foi ter sido, mas lembrar-se.

10 Ou em ti

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Marcelo Moraes Caetano é

Professor de Português e Literatura; Gramático; Crítico literário; Tradutor de Alemão, Inglês, Francês e Italiano; Estudioso de Latim, Grego e Mandarim. Escritor, jornalista e poeta, com 12 livros publicados, e várias premiações (Academia Brasileira de Letras, ONU, UNESCO, Fundação Guttenberg, XIII Bienal Internacional de Literatura do Rio de Janeiro, Litteris, Sesi, Firjan). Autor do grupo RAFROM-Núcleo de Estudo e Treinamento em Linguagem e Tecnologia, credenciado á Pós-Gradualção em Letras da Universidade Federal Fluminense. Revisor e colunista da Revista de Cultura ALIÁS. Especialista em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Mestrando em Estudos da Linguagem pela PUC-RIO. Pesquisador com dedicação exclusiva pelo CNPq. E-mail: mmcaetano@hotmail.com

 

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