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Alerta

  

O Zelador do Céu

Fábio Lucas

   O mirante do sr. Jacinto Cruz... Nos feriados e dias santos,  o sr. Jacinto escalava o mirante. De óculos azuis e barbas compridas, ali ficava horas, mudo grudado à pequena luneta, após hastear a bandeira nacional no pequeno mastro envolvido em fita verde-amarela.

   Julgava-se o síndico de Deus, contava e recontava as estrelas, a ver se todas estavam no seu lugar. Não faltando nenhuma, poderia descer do mirante em paz com o Criador. Nos dias de maior fervor, em que a cúpula do céu se apresentava toda iluminada, parava os olhos num ponto indefinido e se perdia na contemplação.

   Somente admitia o universo como um todo. O esforço do pensador está em buscar as relações. Tudo se liga, todas as coisas são atadas umas nas outras: a estrela e a galáxia, a abelha e o enxame, o mar e o grão de areia, o nascimento da criança e a morte do velho. Tudo tem a mesma natureza, é governado por uma lei geral, tão geral que o homem. distraído, não se apercebe da variedade do real.

   Toda ciência corta a realidade em pedaços, é redutora. Toda arte vira uma porção do real, aquecida pelo ardor da paixão. O homem julga progredir quando retalha o real, quando o analisa, ou seja, quando o retira do real. Cata resíduos, coleciona ruínas, só apreende entidades mortas e frias, já acontecidas.

   Só Jacinto sobe o mirante, confere o universo, desce, vai ao quarto, consulta o microscópio. Despreza os que se alegram com o Carnaval e os que choram nos enterros. Tudo isso é fração da realidade, paixões, partículas. Quem liga uma coisa a outra estabelece o nexo geral, navega no passado e no futuro, mistura as marchas da história, transcende a cronologia. O saber não é feito de rações de alpiste. Quem possui uma ânfora não pode ambicionar o mar. O relógio e o dicionário são representações do fracasso do homem, de sua impossibilidade de alcançar o real. Mas cada partícula pode ocultar o desenho do todo. Sr. Jacinto gosta de contar as estrelas. Com a luneta vai localizando-as. Sente-se responsável pelo firmamento, pela ordem natural das coisas. Cada objeto no seu lugar. Certas partículas me levam ao êxtase.

   Tem repugnância do profeta Ramiro, acha-o pernóstico, com seu falar escasso, suas frases lapidares, ditas vagarosamente a pitonizar catátrofes. A maior vítima deste é a mulher, comparada à cobra surucucu: bela, bela, de amplexos mortais!

   O profeta Ramiro não era inimigo do banho, falava com hálito fétido, perapassado pelo cheiro de café e tabaco azedo, aderidos à barba difusa. Diziam-no com partes com o gambá: cheirava mal e se alimentava de miolos de galinhas.

   Profetizava catástrofes. gostava de visitar moribundos a fim de decifrar os avisos da morte. Nos anos de seca se extasiava na contemplação do céu amarelado, ou turvo da fuligem das queimadas, como nos agostos e setembros prolongados: chuvas ausentes, secura nas almas. Quando saía em visita, todos escondiam os canários de sua visita, cobriam as gaiolas com panos, pois ficavam tristes e morriam. Tinha o olhar de víbora, malfazejo.

  Só Jacinto se aborrecia com os rompantes do professor Ramiro. Então ele não vê que o joão-de-barro é o maior arquiteto que já existiu em todos os tempos? Os homens não sabem construir. Os homens foram feitos para as desconstruções. Suas maiores descobertas destinam-se à guerra. A arquitetura humana é imprestável. Onde há governo, há edifícios públicos, obras santuárias, sintomas de poder e escravidão. As casas, por sua vez, se amontoam e criam o xadrez urbano, cheio de prisões e ciladas. O joão-de-barro tem um risco acadêmico, clássico. Sua porta é orientada para defender-se do vento, da chuva e da tempestade. O único inimigo é o homem.

   Já o profeta Ramiro prefere, na forma e no espírito, o ninho de guacho, uma descabelada touceira. Diz que o pássaro é psicodélico, construtor daquela perfeita garofina, traçada sob o modelo pós-moderno.

   Só Jacinto acha aquilo um absurdo, um verdadeiro cancro da natureza, um desses lapsos do Criador que devem ser necessariamente absorvidos pela lei dos grandes números.

   O profeta Ramiro tem opinião diferente. Que o Criador, um dia, ordenou ao pássaro: vai ser guacho na vida! E deu-lhe instrução para entreter um ninho assimétrico. juntando gravetos e irreverências. Uma oudadia para provar que a razão não é tudo. Um aviso da pós-modernidade. O acaso é mais criador do que a ordem.

 O profeta se recorda dos poemas de Roldão Starling, aquele que introduziu o modernismo em Transvalina. Foi capaz de unir a radiante arquitetura do pássaro, êmulo de todos os calculistas, de todas as formas fixas, dos sonetos e das estações dos anos às projeções do infinito:

   "Quando passo pelo riacho

    Vejo o ninho de guacho

    Com a mão de Deus por Baixo".

    Um dia o profeta Ramiro previu a morte do sr. Jacinto. Coisa mais absurda. Mas o sr. Jacinto, ao descer do mirante, pisou em falso (opinião de alguns) ou teve um degrau comido pelos cupins (conforme outros), mas o caso é que despencou das alturas, fraturou a base do crânio e morreu.

   Quando o carpinteiro-mor de Transvalina, o sr. Ernesto, foi aprontar a escada do mirante, subiu até o topo e, de lá, o que viu: a luneta do sr. Jacinto era voltada para o quintal de Dona Dulce, dos Correios. Dali era fácil ver a grande estrela das masturbações locais e trocar seu jaleco amarelo pela minissaia de lantejoulas. O indecifrável cosmo do sr. Jacinto, seria?

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Fábio Lucas é

crítico literário, membro das Academias Mineira e Paulista de Letras e autor, entre outros livros, de A mais bela história do mundo.

Conto publicado na revista e (Senac/SP), de janeiro de 2005, cedido gentilmente pelo autor

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