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Conto

Um bando de personagens

soltos por aí

Raul Drewnic

    O Escritor Número Um foi até a estante, percorreu com os olhos e o dedo a letra P, apanhou um livro e o levou até o sofá, onde o Escritor Número Dois estava. Sentou-se ao lado dele:

    “Aqui está resumido tudo que eu acabei de dizer.”

    O Escritor Número Dois nem olhou para o livro:

    “Já sei. Pirandello. Seis personagens à procura de autor. Faz 10 anos, aqui mesmo, você falou de tudo isso, pegou este mesmo livro e me esfregou na cara.”

     “E não adiantou nada...”

     “Meu jeito de ver a literatura é outro, sempre foi.”

     “Eu sei. O jeito errado”, disse em tom de censura o Escritor Número Um, “Você acredita que um romance precisa ter uma base... Técnica, um conteúdo... Científico. Isso é baboseira. Escrever uma peça ou um romance é muito fácil. É só...”

      “Dar liberdade aos personagens e deixar que cada um, por bem ou por mal, pelo amor ou pela força, ocupe seu espaço”, completou o Escritor Número Dois.

      “É isso. Eu sempre fiz assim, desde o primeiro livro, e você não pode dizer que não deu certo, pode?

      “Não, já eu...”

      “Você queria o quê. Você faz tudo errado. Eu já disse. Solte seus personagens na rua, no parque, na estrada, na praia. Ou coloque todos numa clínica psiquiátrica, também pode. Mas, pelo amor de Deus, deixe que eles se amem, que eles se odeiem, que eles se espanquem, sem você ficar toda hora interferindo e ditando regras”.

      “Eu devo soltar os personagens e ficar registrando . Esse é o segredo?

      “Esse mesmo.”

      “Desculpe, mas se eu fizesse isso eu não ia ser um escritor. Eu ia me considerar um escrivão, um escrevente...”

      O Escritor Número Um balançou a cabeça:

      “Você é quem sabe. Se vice prefere continuar a construir seus personagens recorrendo a manuais de biologia, fisiologia, psicologia, psicanálise e psiquiatria, não vai acontecer nada. Quer dizer, vai acontecer isso que já está acontecendo. Você vai vender 50 exemplares da cada livro publicado.”

      “Mas vou continuar bem com a crítica.”

      “É claro. Dois ou três artiguinhos em jornalecos. E você vai ficar bem também com a sua consciência. Um escritor coerente, fiel aos seus princípios...”

      “Pode zombar, mas eu sou assim, sempre fui e não vou mudar. Um dia acabam reconhecendo o meu trabalho.”

      “Pois é, sorriu o Escritor Número Um. “Talvez um dia você seja reconhecido. Deixe vcer. Que tal 22 de outtubo de 2080? Ou 3 de novembro de 2081. Mas até lá a sua mulher...”

       O Escritor Número Dois apertou com as duas mãos o livro

       “... já vai ter morrido de fome.”

       O Escritor Número Dois continuou apertando o livro, agora com mais força ainda, como se fosse rasgá-lo.

       “E os seus filhos também. E tudo porquê: Porque você não sabe tratar bem dos seus personagens, não ouve o que eles querem, não faz um cafunezinho neles, não respeita os direitos que eles têm.”

       O escritor Número Dois olhou com ódio para o livro:

      “E não vou respeitar nunca. Sabe do que os personagens precisam? De rédea curta e de chicote. Personagens são que nem os filhos. Nenhum presta. Nenhum. Você se distrai e eles metem a faca nas suas costas. Você tem conhaque aí?”

       “Vou pegar. Puxa, você está alterado. O que foi que aconteceu?”

       “Meus dois filhos rasparam toda a minha conta e a da minha mulher e fugiram. Foram morar não sei onde, num cafundó africano ou num lugarejo indiano, numa comunidade mística. O que você acha disso?”

       O Escritor Número Um pegou o conhaque e dois copos:

       “Você vai ficar uma fera, mas eu acho que os seus filhos são dois personagens fantásticos.”

       O livro passou a um palmo do nariz do Escritor Número Um.     

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Raul Drewnick é escritor e jornalista

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