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Antologia felina

Briga de cão e gato

Fabrício Carpinejar

      O gato é o melhor amigo do poeta brasileiro. O cachorro antes era o preferido dos estros. Deixou a realeza para o felino. Talvez seja a mudança de hábito, a adoção do apartamento em detrimento da casa, a adoração do silêncio dos condomínios residenciais e dos escritórios na hora de escrever, sem o alvoroço dos quintais e dos pátios.
      Não que a figura canina tenha desaparecido. Affonso Romano de Sant'Anna, em Textamentos, tece emocionada homenagem ao seu afinado cão, capaz de acompanhar o adágio da 6ª Sinfonia de Beethoven com o ritmo da respiração. O pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007) escreveu um de seus últimos livros dedicado a um cão de olhos amarelos, triste, soturno, sofrendo na calçada de um bar.
      O que aconteceu foi uma secreta revolução dos bichos. As patas perderam prestígio para as garras. Miados dominam o teclado e o mouse tem que se cuidar para não ser engolido.
       A verdade é que o cão ficou trancado na máquina de escrever. Pode até permanecer como o dileto na memória dos ficcionistas (destaque para Baleia, de Vidas secas, de Graciliano Ramos), mas não manda mais nos versos. Antigamente, até os anos 1970, o cachorro funcionava como um alter ego confessional. Aparecia como personagem predileto de toda a geração 60 brasileira e de grande parte dos portugueses, de Fernando Pessoa a Ruy Belo. Mario Quintana o idealizava como um paranormal do lar, "o único que enxerga o vento e percebe sua corrida pelas árvores” João Cabral de Melo Neto chegou a fazer todo um volume comparando os movimentos do rio Capibaribe de Recife a um cão sem plumas.

                         "O rio ora lembrava
                         a língua mansa de um cão,
                         ora o ventre triste de um cão,
                         ora o outro rio
                         de aquoso pano sujo
                         os olhos de um cão”

     Houve uma variação da tipologia do poeta, que abandonou o aspecto baldio de vira-lata e boêmio, do senhor do boteco e da rua, do uísque cão engarrafado celebrado por Vinicius de Moraes, para assumir o espaço doméstico, individualista e caseiro do escritório.
     Os gatos são as novas beldades dos enigmas e das metáforas. Do Rio de Janeiro de Carlito Azevedo à Manaus de Aníbal Beça. Além de tomar a companhia da escrita, abocanharam a ração da bandeja.
      Poetas jovens como Alice Sant'Anna, em Dobradura, extravasam a predileção com humor. Cria cinco tópicos com o título O que sei sobre os gatos. É óbvio que ela cutuca os adversários de estimação, exercendo comparações de comportamento.

                       "Os cachorros mexem o rabo
                        quando estão felizes, os gatos mexem o rabo
                        quando estão nervosos: quando estão contentes
                        os gatos fazem barulho de motor
                        que se chama ronronar”

     Ter um gato perto é quase uma escolha filosófica, uma postura reflexiva. Ganhou o eleitorado lírico pela sua independência e pelo cotidiano autônomo. Por circular entre mundos. Pelas sete inesgotáveis vidas. Como parece que não está nem aí para o que está acontecendo, excita a meditação e os símbolos. O gato já é um poema naturalmente, inescrutável, dono de uma discrição absoluta. Facilita inúmeras interpretações.
      A paulista Orides Fontela (1940-1998), que demonstrava um fascínio pelas criaturas de bigodes, investigou seu domínio misterioso tanto em Helianto (1973) quanto em Teia (1996). Considerava o animal um visitante, que não se entrega à submissão ou ao controle. Tanto que gato não usa coleira, usa colar.

                                                                "Na casa
                                                  O imperecível mito
                                                         se aconchega


                                               quente (macio) ei-lo
                                                 em nossos braços:
visitante de um tempo sacro (ou de um não tempo)”

     O cachorro protege a residência, o gato protege a solidão. O cachorro mendiga afeto, o gato seduz com a distância. A sensação é que o cachorro é fofoqueiro, quer contar algo sempre, o gato já é um confidente, que escuta e guarda, protetor dos segredos. Nasceu com a batina no pelo.
      Assim como pode ser um gorducho preguiçoso, comilão de pizza, ilustrado pelo temperamento Garfield, pode ser um corajoso trapezista dos telhados. Concilia a dupla personalidade com perfeição. Sadiamente bipolar. Em Livro de auras, Maria Lúcia Dal Farra tenta registrar sua rápida transformação, essa metamorfose súbita, a migrar de repente da maior inércia para a elasticidade de um acrobata. Define o bichano como "um viveiro de alheios." Está com um olhar aqui, atento aos mínimos movimentos próximos, e outro acolá, em pensamentos longínquos. Chacal, em sua antologia premiada Belvedere, traduz essa contemplação suficiente. Nem é bem um olhar, significa uma admiração.

                          "o gato lhe acompanha
                          onde quer que você vá
                          só com olhos - não é besta –
                          para ele basta olhar”

     Os gatos são os filhos dos tigres de Jorge Luis Borges, netos dos tigres de William Blake. Herdaram a floresta, resíduos elegantes do mato. Sábios, professam sabedorias em fachada de esfinge. Ensinam inclusive Ferreira Gullar. Em Lição de um gato siamês, da obra Muitas vozes, Gullar passa a entender que o tempo é eterno porque afetivo.

                         "dura eternamente
                           enquanto vivo”

      Ser professor de um dos maiores poetas da língua portuguesa não é qualquer coisa. É tarefa inspirada de musa.                        _____________

Fonte:

Revista da Cultura (São Paulo), nº 26 , set. 2009

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