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Contos caninos

 

O Cachorro

Moreira Campos

Ora, o diabo do cachorro me estragou o resto da tarde! Havia bem dois meses que não nos víamos. Eu vinha pela calçada do mercado quando ele me avistou, e foi uma festa! Atirou-se contra mim, patas erguidas, o rabo parecia um espanador, porque ele é felpudo. Segurei-o pelas orelhas, apertando-lhe a cabeça com ternura, como sempre fiz. Isso como que o enlouqueceu: eram os amigos que se reencontravam. Talvez há muito tempo fizesse a si mesmo esta pergunta: “Aonde ele anda?” Embaraçava-se nas minhas pernas, correu até a esquina, onde levantou a perna e urinou, claro de alegria: uma inocência de criança. Não me deixou mais, vinha ao meu lado.

             A dona dele é Marta. Criou-o desde pequeno, como me disse. Recebeu-o numa caixa de papelão e lhe dava o leite na mamadeira, ela ou a preta Nicota.

             Namorei Marta quase um ano. Menina tranquila, interessante, bem feita de pernas. Nasceu para ser mãe, tudo nela fala de maternidade, até a maneira como agarrava Japi, agarrando-o nos braços e deixando que ele lambesse o rosto. Namoro de janela. Depois passamos a freqüentar o banco da pracinha, porque as diversões aqui são poucas, o próprio cinema fechou. Japi nos acompanhava. Às vezes, Marta o prendia em casa, mas ele pulava a janela. Com o tempo, também me anunciava de longe. Evidente que Marta sabia a hora da minha chegada: daria os últimos retoques, a gota de perfume atrás das orelhas bem feitas, muito coladas à cabeça. Mas Japi dava o sinal: latia na porta, vinha ao meu encontro, acompanhava-me.

             Os pais de Marta aprovavam o namoro. Sou o funcionário novo do Banco. Fazia o segundo ano de Direito na capital, mas preferi o concurso do Banco e me designaram para o interior. O cumprimento respeitoso do pai de Marta, um bater de cabeça. Homem calado, sério. E funcionário público: dirige o posto fiscal. Um dia apertou-me a mão ali na janela. A mãe de Marta, muito simpática. O riso manso, grande ternura pela filha única, que ela discretamente examinava para saber se se preparava bem para receber-me.

             - Eu gosto mais daquela blusinha de gola alta.

             Marta tinha, e tem, independência:

             - Não, esta está bem.

             Ela própria me contava essas coisas, rindo.

             Eu já seria de dentro de casa. Em dia de folga, um domingo ou feriado, Nicota me trazia na bandeja a fatia de bolo, com o copo de refresco e o pequeno guardanapo em bico de renda, que eu apreciava. Requintes da mãe de Marta, dona Dadá, porque Nicota, por ela mesma, é preta velha solta dentro do vestido, um pé na chinela. Dona Dadá é admirável em trabalhos de agulha, bordados. Verdadeiras filigranas. O pai de Marta, Seu Alfredo, já brincava com a filha na minha presença e me indagava dos  negócios no Banco.

            Tive a desconfiança de que a mãe de Marta cuidava, com antecipação, de alguma peça do enxoval para a filha. Digo isso porque um dia surpreendi as duas na loja do Seu Eurico, e ambas se vexaram. Dona Dadá se explicava:

             - Ando aqui atrás de umas linhas.

             - Sei, sei.

             Acontece que apareceu Denise, na época das férias. Estuda em colégio de freiras na Capital e é filha do prefeito Aniceto, quase dono do município, com duas ou três fazendas por aí. Ele e o gerente do Banco são bons amigos. Tomam café no gabinete, riem, o gerente o acompanha até a porta.

             Denise é deliciosa. Em toda ela uma exuberância de interna que se libertou das freiras. A pele alva, os cabelos negros. Os olhos fogem, enquanto finge examinar o esmalte das unhas. Foi assim que a vi e conversei com ela em noite de retreta. Os encontros se repetiram. Apareço na janela de sua casa, que é uma casa grande na esquina, com varandas, ou passeamos pela calçada até o fim da outra rua, que é lugar calmo e deserto, a lâmpada do poste queimada. A mãe de Denise, também muito simpática. O prefeito sempre me atirou a mão de longe, expansivo.

             Denise me disse que não quer mais voltar para o colégio.

Foi difícil afastar-me de Marta. Pouparei detalhes. Houve a necessidade de mentiras e desculpas. Vexames. Tenho sabido que ela se nega a falar até com as amigas. Tranca-se no quarto. Em verdade, auxiliou-me muito a sua própria dignidade. O pai me evita. Quando me vê, torce caminho. Também faço o mesmo. E quando isso não é possível, passamos um pelo outro de olhos no chão, eu fingindo olhar os meus sapatos.

            Elvira, a amiga mais chegada de Marta, diz na pracinha que eu sou um “canalha”.

            - Deixa pra lá!

            E agora me aparece o diabo desse cachorro! A mesma alegria de sempre. Conversa! Alegria bem maior, imensa. Descobriu-me. Corre à minha frente, volta, gruda-se, acompanha-me os passos pela calçada que me leva à minha pensão. Pára de repente: parece estranhar tudo, como se quisesse dizer que a rua e a casa eram outras.

            Já na porta da pensão, termino por aborrecer-me. Enxoto-o, grito:

            - Vá embora! Vá embora!

            Ele permanece. Insisto:

            - Vá embora!

           Olha-me, baixa a cabeça e, por fim, toma o seu caminho. Acabo de limpar com o lenço, que trago sempre perfumado, o resto de lama que as suas pequenas patas deixaram nas minhas calças e entro na pensão. Pensão medíocre, anônima, onde, já aquela hora, os seres comem em silêncio, debruçados sobre os pratos.

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Fonte: CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.

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