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Antologia Felina
Contos

 

 Oferenda ao deus dos gatos 

      Jorge Fernando dos Santos 

      Aos ouvidos de Alonso, o ruído das goteiras tamborilava feito uma canção de ninar. Enfermeiro aposentado, ele sofria de uma insônia crônica provocada pelo estresse acumulado ao longo de muitos anos de trabalho em hospitais da rede pública. Nas noites de chuva, geralmente pegava no sono com certa facilidade. Já estava quase cochilando quando distinguiu um som macio e dissonante ao ritmo das goteiras. Abriu os olhos no escuro do quarto e afinou a audição. O estranho som se repetiu muito baixo e monótono, num distante moto-contínuo. Um gato, ele deduziu, ao ouvir o miado triste feito um pedido de socorro.

     Alonso saltou da cama, calçou os sapatos e vestiu a velha capa de gabardine sobre o pijama. A mulher acordou assustada e ele a tranquilizou. Disse que precisava ir lá fora, pois não poderia dormir ouvindo aquele miado e sabendo que o animal estava na chuva. Acendeu a luz da varanda, abriu a porta e passou também pela garagem. Tão logo abriu o portão, pôde ver o felino do outro lado da rua deserta, encolhido junto à porta de aço do comércio que ficava em frente à sua casa.

     Alonso atravessou a rua e constatou que se tratava de um filhote. Acariciou-lhe o pelo e segurou-o cuidadosamente junto ao peito. Voltou para casa e dirigiu-se ao banheiro. Tirou a capa e enxugou o cabelo na mesma toalha de rosto que utilizou em seguida, para secar o pequeno animal. Levou-o até a cozinha e esquentou um pouco de leite. O bichano de pelo rajado estava mesmo faminto, pois lambuzou os bigodes e lambeu até o fundo do prato. Depois se acomodou sobre uma folha de jornal, embaixo do fogão, e logo começou a ronronar.

     A princípio, a mulher não gostou da ideia, mas Alonso insistiu tanto que ela acabou se acostumando com o novo morador. Os filhos já estavam crescidos e há algum tempo o casal experimentava os efeitos da síndrome do ninho vazio. Federico – esse foi o nome que deram ao gato – não demorou muito a se tornar mascote paparicado por todo mundo. Cresceu sob a proteção da família, recebendo os cuidados necessários para garantir-lhe saúde e pouco depois se tornou um animal gordo, de pelo lustroso e de longos bigodes prateados. Um ano depois, nada nele fazia lembrar o filhote mirrado recolhido na rua numa noite de chuva.

     Certo dia, Alonso assistia à TV sentado na cadeira do papai que a filha mais velha lhe dera de presente no Natal passado. Sem aviso nenhum, Federico adentrou a sala silenciosamente, trazendo alguma coisa presa entre os dentes. Com os olhos na telinha, o dono da casa assustou-se quando o bichano subiu em seu colo e nele depositou o cadáver de uma rolinha. Alonso não sabia, mas, aos olhos do gato domesticado, ele havia se transformado numa espécie de deus, seu colo era um altar de sacrifícios e aquele passarinho morto representava a oferenda do seu devoto num gesto de gratidão. 

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Jorge Fernando dos Santos é

Jornalista, escritor e compositor em Belo Horizonte. Esse conto foi extraída de seu livro Todo mundo é filho da mãe, Editora Ciência Moderna, 2002.

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