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Antologia Canina

Os (ir)racionais

Ingrid Vasques

     Pra mim ele tinha que se chamar Brown. Eu ouvi essa palavra nas aulinhas de ingles da escola, mas nem sabia o significado. Meu irmão queria que fosse Scooby." Ah, Victor, você nao tem criatividade, ein." " E você tem? O que significa Brown? Diz ai esperta." Então ficava muda com cara de choro. Mamãe dizia: Vai ser Salaminho, ponto final. Se tratava de um Dachshund, ou melhor, o cachorro salsichinha da propaganda da Cofap. O nosso primeiro cão, quer dizer, primeiro macho já que um mês antes tentamos ter uma cadelinha, mas a Bigol na primeira semana já tinha destruído metade dos nossos sapatos, o pé da minha cama e um pedaço do sofá. Foi para um outro lar. Apesar da pouca convivencia, chorei. Não tem problema, filhinha, a gente vai encontrar um outro cachorro - consolo de mãe.

     Tio Dirceu ligou ao saber da história. " Ele ja está aqui em casa, sábado vocês vem pra busca-lo." E lá fomos discutindo pelo caminho o nome do novo membro da familia. A porta mal abriu e ele veio nos recepcionar. Não o tio, mas o cachorro. Era marronzinho, pequenininho e com umas orelhas enormes. Own! Que bonitinho, mamãe! - falei ja pegando no colo. Me mordeu e fugiu de mim logo de primeira. "Dumbo! Não faça isso!" Tia Janyr explicou que por causa das orelhas grandes apelidaram de Dumbo, lembra do elefantinho voador? Sentei no sofá e na inocência da minha tenra idade (6 anos) eu fiquei olhando com os olhos marejados, com ciume do cãozinho que não gostava de mim e que fazia festa a todos da casa. Meu irmão mais velho, que já gostava de implicar comigo, foi logo dizendo: Olha como ele fica feliz comigo, acho que vai me escolher como dono.

      E a noite daquele sábado foi assim. Todos os adultos conversavam na sala, meu irmão brincando com alguma coisa que não lembro e eu correndo atrás da atenção do cachorrinho, que me desprezava de longe e rosnava quando eu chegava perto. Por fim, lá pra umas dez da noite, Dumbo dormiu no sofá. Aquele filhotinho mal criado e cheio de vontades conseguia ser a coisinha mais lindinha de se ver quando estava dormindo. Na ponta do pé eu cheguei perto, deitei do lado dele e segurei na sua patinha fazendo carinho, como se fosse um bicho de pelúcia. Dessa vez as gotículas nos meus olhos eram de emoção. "Acho que agora ele vai gostar de mim..." pensei. Quando o danado abriu os olhos e deu comigo, saiu correndo de novo.

     Morávamos em uma casa de vila em Cascadura na época. Tinha um terraço enorme e uma piscina que não tinha sido azulejada - no verão meus joelhos viviam arranhados por causa disso. E lá Dumbo construiu seu império, demarcando cada cantinho com muito cuidado pra que ninguém esquecesse que ali habitava um cachorro. Acho que ele levou um pouco a sério o papo de elefante voador, porque da sacada do terraço onde subia para olhar a rua, ele caiu cinco vezes. Passávamos o dia na casa da vovó, só íamos pra nossa casa quando o papai ou a mamãe chegava do trabalho pra nos buscar. O filhote passava o dia todo sozinho no seu vasto espaço, e qual a nossa surpresa quando chegávamos perto da escada que dava pro terraço? Receber na cabeça uma cambuca vazia arremessada pelo cão e uma chuva de latidos. Estava morto de fome e de saudades. Não de mim, obvio. O interessante era que mesmo rosnando pra mim, me desprezando, me desmoralizando na frente das pessoas quando pedia-o para sentar e ele pulava em mim, se eu entrasse na piscina ele entrava também e me puxava para a borda como se quisesse me salvar. Se eu chorasse ele ficava sentado na minha frente com as orelhinhas levantadas ou lambia as minhas mão.

     Mudamos pra um apartamento em Madureira. "Vamos ter que dar esse cachorro! Aqui eles não permitem animais." Lá vai choradeira. Abraçava Dumbo todo dia chorando e por incrível que pareça nessas vezes ele não rosnava pra mim. Foi feita uma reunião de condomínio: o cachorro fica ou não? Levando em conta que ele não incomodava tanto e que havia crianças muito mais mal educadas do que ele, sim, ele ficou! " Duuumbooo, você ficaaa!!" e respondia "HALF HALF". São muitas as histórias que passamos com esse cachorrinho, até arranjamos uma companhia pra ele: Julia, a cadelinha que pra não ser jogada na rua ficaria um tempo na nossa casa. Tempo que dura até os dias atuais. Incrível como a presença do sexo feminino muda a vida de um macho. Tibimbim, como o chama minha mãe, passou a ser mais amigável, a latir menos e até ser mais paciente na hora de ir na rua.

      Em dias de verão meu quarto virava (e ainda vira) um acampamento. Economia de ar condicionado, todo mundo dorme num quarto só pra aliviar o bolso da matriarca. Desde sempre o Dumbo foi abusado. Deitava na minha cama querendo ocupar todo espaço. Naquela noite eu já estava de saco cheio. “Dumbo desce! Dumbo sai! Dumbo vai pra sua cama!”. Pela madrugada eu o expulsei de vez. Tive uma noite excelente, com a cama só pra mim. Em pleno sono da manhãzinha, aquele bem gostozinho de ter, quando o dia ainda está clareando e nada mais importa. O ar bem frio que refrescava, o edredom macio e o sussurro do silêncio. Nada pode ser melhor. Ei? O que é isso? O ar esquentou de repente? Que cheiro ruim é esse? Oh! Mas de onde vem essa umidade? Acreditem, o capeta em forma de cão fez xixi na minha cabeça.

     Agora eu já estava quase completando 18 anos. Faltava menos de um mês. Sexta feira santa e mais uma rotina de levar o cão na rua. Na volta tentei tirar a coleira dele, então peguei ele no colo. Começou a rosnar pra mim. Normal. De repente só senti os seus dentes fincados bem no meu rosto. Um arranhado no meu nariz e um furo bem pertinho do olho esquerdo.

     CHEGA CHEGA CHEEGAA!!! EU NÃO QUERO MAIS ESSE CACHORRO!! DEVOLVE ELE, MÃE! MANDA ELE DE VOLTA PRO SÍTIO DO TIO DIRCEU! EU NÃO AGUENTO MAIS!!

     Eu já nem olhava pra ele. Nem sabia qual sentimento eu tinha por aquele animal: se era amor, raiva, ódio. Só sei que passei mais de um mês sem precisar levar ele na rua. Talvez tenha sido um disfarce da minha mãe pra que eu não assassinasse o cachorro. Minha cara ficou igual a do ursinho Pooh: Inchada com dois olhinho pequenos que não abriam direito.

     Depois desse dia eu passei a tentar esquecer todo esse pesadelo. Esquecer que tinha cachorro. Levava na rua muito maquinalmente. De uma coisa ele não pode reclamar: eu nunca interrompi na sua liberdade na rua. Late o quanto quiser, espanta os pombos e faz xixi a vontade. Há algumas semanas atrás nas habituais aventuras, a vizinha que vinha com a sua cachorrinha infernal (aquelas pinches insurpotáveis) fez questão de colocar em evidência a sua opinião não solicitada:
- Menina! Você não tem controle sobre o seu cachorro. Você precisa se impor. Seja firme menina conversa com ele. Por isso que ele late: por que você não mostra moral e bla bla bla bla bla...
Nessas horas a gente liga o aham e sai andando com pressa.
- Deixa eu ir que eu tô com pressa.


      Até agora ela ainda não voltou a falar comigo direito. Mas depois que ela teve essa atitude eu até voltei a amar o meu cão. Não que ele tenha me dado um abraço e agradecido por eu ter fugido daquela vizinha, mas por me fazer refleti sobre a pergunta: quem realmente é o animal irracional nesse mundo? Alguns dias depois eu o chamei: “ Ei, garoto, vem cá... vamos na rua! Vamos passear!” e ele não veio. Apenas Julia, animada como sempre. “Dumbo, o que você tem? Por que não está subindo na cama?” Ele chorava de dor. “Mas que dor? Diga-nos, doutor Paulo, o que há com ele?” “ Seu cachorro sofre de dor na coluna. Ele já está numa fase avançada da vida. Por isso recomendo não pegar mais ele no colo, porque na hora da dor ele pode avançar”. Ah! Então é issoo!

     Eu não sei se o Dumbo pensa ou se sempre agiu por instintos. Também não sei se eu é que fui irracional de não enxergar a irracionalidade dele. Entretanto, ele nunca deixou de ser o meu cachorro, que mesmo rosnando pra mim estava do meu lado. Por mais que eu o expulse e grite ele não me abandona. Agora, ele sobe as escadas devagar, tem um olhar cansado e não late mais como latia antes. Às vezes eu fico triste ao ver que o meu capetinha envelheceu, mas ao mesmo tempo feliz por tudo que já passei com ele: O animal mais racional que eu já conheci.

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Ingrid Vasques é uma jovem escritora carioca que, por enquanto, publica seus textos no blog http://blogavistadeumponto.blogspot.com/


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