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Biografia profissional

4° Emprego:
                     Auxiliar de Biblioteca

Cícero da Mata

              Cheguei ao 4º emprego, em março de 1970, sem conhecer o local, nem o que ia fazer ali. Fui preencher a vaga de Auxiliar Técnico, conseguida através de um anúncio fechado. Era uma biblioteca, mas não uma biblioteca convencional. Chamava-se BIREME-Biblioteca Regional de Medicina, localizada no campus da UNIFESP-Universidade Federal de São Paulo, A Faculdade de Medicina, cujo hospital-escola é o Hospital São Paulo, na Rua Botucatu, Vila Clementino. Trata-se de uma instituição criada em 1967 através de um convênio entre o Governo Brasileiro, a OPAS-Organização Pan-Americana de Saúde e a OMS--Organização Mundial da Saúde com a interveniência da NLM-National Library of Medicine, dos Estados Unidos.
              O histórico da BIREME resume-se no seguinte: A NLM precisava instalar uma base na América Latina para atender os inúmeros pedidos de artigos técnico-científicos na área médica que vinham da região. Através do citado convênio, a Biblioteca da UNIFESP foi a escolhida para encampar o projeto. Ao mesmo tempo em que atendia o corpo discente e docente, mantinha o atendimento às diversas bibliotecas das universidades brasileiras e latino-americanas. Para isto foi necessário o aporte da NLM com um enorme acervo de periódicos especializados. Na época em que entrei, o acervo de revistas contava com aproximadamente 4000 títulos, cujas coleções contavam com até 30 ou mais anos. Hoje a BIREME ainda é conhecida por este nome. Mas, a partir de 1982 adotou outra denominação oficial: Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, devido às suas atividades e serviços dirigidos aos povos da região.
                Os serviços prestados pela BIREME hoje diferem muito daqueles que prestávamos no inicio da década de 1970. Na década seguinte a tecnologia da informação se encontrava a todo vapor e a BIREME participou ativamente desse processo, a que demos o nome de informática. Sua participação neste processo extrapolou a área da medicina, chegando a ter uma atuação destacada no processo de modernização das bibliotecas de um modo geral. Mas como era o trabalho? Todas (ou quase) as revistas científicas do mundo, na área médica, são indexados num periódico denominado “ Index Medicus” , publicado mensalmente pela NLM. É uma publicação do tamanho de uma lista telefônica, em papel bíblia e letras minúsculas.
                Através desse Index as bibliotecas tomam conhecimento do que se está publicando em cada ramo da medicina em todo o mundo. Os pedidos de artigos são remetidos à BIREME através de um formulário e os artigos são enviados à biblioteca solicitante via correio gratuitamente. Pois bem, meu trabalho era exatamente este: encontrar o artigo contido num dos quatro mil títulos existentes no acervo. Logo, pela manhã, recebia uma pilha de pedidos, colocava-os em ordem alfabética pelo titulo da revista, e ia recolhendo-os. Encontrando, colocava uma cópia do pedido na página inicial do artigo e outra cópia na estante onde a revista foi retirada. As revistas eram entregues ao serviço de fotocópia, que depois eram embalados num envelope especial e enviados ao correio.
               Está visto que tal serviço (encontrar itens num determinado estoque) não me era estranho. Nos meus dois empregos anteriores já realizava esta função. A diferença agora é que o estoque passa a ser um acervo e a quantidade de itens a serem localizados é muito maior. De modo, que as bibliotecárias estranharam o fato de eu realizar aquele trabalho com alguma desenvoltura. Havia dias que eu podia encontrar mais de 100 artigos só no período da manhã, o que normalmente podia levar o dia inteiro. Mas existe a possibilidade de não termos algum título de revista no acervo. Neste caso, deixamos o pedido para ser atendido posteriormente através de uma pesquisa nos catálogos de bibliotecas de outras universidades.
                Como me sobrava tempo, passei também a realizar as pesquisas dos artigos não encontrados no acervo. Para isto era preciso procurar um determinado título nos catálogos das bibliotecas de medicina das principais universidades do Brasil, e, caso não encontrasse, da América Latina. Eram uns 30 catálogos manuseados na busca de cada título de revista. Exemplificando: precisamos encontrar o fascículo nº 3, do vol. 7, da revista “American Journal of Soviet Medicine”. Cada qual dos 30 catálogos serão pesquisados nesta busca. Muitas vezes o tal fascículo era encontrado somente no 29º catálogo pesquisado. É fácil imaginar o tédio de repassar aqueles 30 catálogos para cada fascículo procurado. Se houvesse computador na época, o problema estaria resolvido.
               Comecei a ficar entediado com esse trabalho de busca nos catálogos e a pensar numa maneira de contorná-lo. Encontrei a maneira: todos os catálogos são ordenados de modo semelhante pelo titulo da revista, seguido da coleção que a biblioteca detém em seu acervo. Assim, bastava desmembrar os catálogos, recortar o titulo da revista junto com a respectiva coleção e colá-lo numa ficha do fichário, modelo “visi-record”, onde as fichas são dispostas lado-a-lado, aparecendo apenas o título da revista. Dito e feito, construí um enorme fichário, onde cada ficha correspondia a um titulo de revista. Ficha é modo de falar, pois em verdade é um formulário medindo aproximadamente 15cm de altura por 10 de largura, onde eu grampeava a parte desmembrada do catálogo. Se fosse um título conhecido, a ficha ficava mais encorpada. Muitas vezes era preciso tirar uma fotocópia reduzida do catálogo para caber na ficha.
              Não era um fichário bonito, uniforme: tinha fichas contendo recortes de 30 catálogos e fichas contendo poucos recortes, mas era prático e rápido na consulta. Agora, com o pedido da revista em mãos eu precisava apenas encontrá-la no fichário e, em seguida, verificar qual biblioteca possuía aquele título de revista e aquele fascículo procurado. Nem todas as bibliotecas possuem a coleção completa. Assim, o catálogo (coletivo) foi se ampliando até ocupar três fichários repletos de fichas “visi-record”. A bibliotecárias e a diretoria da BIREME gostaram da iniciativa, pois reduziu substancialmente o tempo de atendimento aos pedidos.
                Em meados de 1972, a administração da biblioteca foi ampliada e passou a ter uma vice-diretoria, cujo ocupante do cargo foi o Dr. Gamboa, um mexicano relativamente jovem com quem eu me dava bem. Certa vez ele me chamou e perguntou se eu não tinha alguns amigos na Faculdade (na época era estudante de Estudos Sociais na Faculdade Farias Brito, atual Universidade de Guarulhos) dispostos a trabalhar como auxiliar de biblioteca. Eu tinha muitos e coloquei cinco deles para trabalhar. Mas apenas um era da Faculdade. Eram quase todos parte de um grupo de teatro amador, que eu integrava. A partir daí o ambiente de trabalho melhorou bastante, pois além das bibliotecárias e o pessoal auxiliar com quem fiz amizades, tinha os amigos trabalhando junto comigo.
               Ao mesmo tempo em que trabalhava, ia concluindo a faculdade em Guarulhos à noite. Naquela época eu passava umas duas horas em dois ônibus que me levavam da Vila Mariana até a Penha e daí até Guarulhos. Naquela época estavam construindo o Metrô de São Paulo e o trânsito nas avenidas Domingos de Morais e Celso Garcia era demasiado lento. De modo que as horas que eu passava nos ônibus dava tempo para estudar, digo ler, um bocado e dormir outro tanto. No final de 1972 conclui a faculdade e não me vi disposto a dar aulas no curso secundário de História, Geografia, Educação Moral e Cívica ou Estudos Sociais. Também não tinha vontade de me tornar bibliotecário, o que não seria má idéia, pois já trabalhava numa conceituada instituição. De modo que me encontrei, de novo, na situação de procurar outro emprego. Mas aos 22 anos e numa época de turbulência política e cultural, decidi viajar “a dedo” pela América Latina, passar um ano no México, uns dois anos nos Estados Unidos e, daí, partir para a Europa, onde faria um curso de História em Paris. Seria uma viagem para durar uns 10 anos.
             Como pretensão e água benta não custam nada, foi o que fiz com a indenização que recebi da BIREME em maio de 1973. Parti para o Paraguai de ônibus, atravessei a Argentina pelo interior e cheguei ao Chile, onde encontrei o amigo que havia saido antes, com quem havia planejado a viagem. Aí permanecemos por um tempo, até pouco antes da queda do Governo Allende, e prosseguimos viagem, de carona, até a fronteira do Panamá com a Colômbia, em plena selva amazônica, o término da aventura. Toda a viagem durou uns 5 meses e retornei ao Brasil numa viagem de barco, entrando pelo Rio Amazonas.                                A volta à São Paulo foi outra aventura: durou mais de um mês, trabalhando como ajudante de caminhão. Pouco tempo depois e através da experiência e das amizades feitas na BIREME, encontrei o 5° emprego. Foi assim que entrei definitivamente na biblioteconomia.

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