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Memória

 

Encontros com Darcy Ribeiro

Fernando Gasparian

     Tenho o privilégio de haver conhecido os brasileiros mais notáveis de meu tempo, mas nenhum deles com a personalidade cósmica de Darcy Ribeiro. Ele era o visionário e o aplicado administrador; o homem capaz de deixar-se emocionar por um verso de desconhecido poeta chinês e disposto a brigar, como se brigasse por alguém da família, em defesa dos desprezados, como são os índios, os negros, os loucos e os vagabundos.

     Darcy fazia parte daquela classe de homens que existem em todos os tempos, e que fermentam a História com a sua alegre ousadia. Nele se misturavam o trovador medieval, o cavaleiro de todas as cruzadas, o frade pecaminoso, o príncipe severo e o andarilho anônimo. Se alguma coisa irritava Darcy, essa coisa era a uniformidade. Darcy era muitos, e nos parecia estar ao mesmo tempo, em todas as partes e fazendo tudo. O jovem antropólogo que foi conhecer a vida dos índios continuava nas selvas, onde fosse que estivesse. O político que, aos quarenta anos, ocupou a vida nacional ao chefiar o gabinete do Presidente João Goulart, ainda que estivesse no exílio ou condenado oficialmente ao silêncio em nosso País, jamais deixou o poder. O educador que criou a Universidade de Brasília, desprezando os modelos habituais dos centros superiores de ensino, continuou inovando. Inovou tanto quanto Anísio Teixeira havia inovado, no ensino básico, ao criar os CIEP's, com Leonel Brizola. E para dar razão a Gertrud Stein, que dizia ser a alegria a coisa mais séria da vida, usou o mesmo espaço para o carnaval satisfeito em ser o grande ensaista nos estudos sobre antropologia, sociologia e história, foi também o grande ficcionista de O mulo e Maíra.

     Meu primeiro encontro com Darcy se deu no governo João Goulart. Naquele tempo José Ermírio de Morais, depois senador, e eu estávamos no centro de um grupo de industriais brasileiros, preocupados em criar um núcleo empresarial sólido que contribuísse, com a força de seus negócios e de seu prestígio político, para a defesa da economia nacional e o desenvolvimento autônomo das atividades produtivas. Éramos o que a imprensa denominava, na redução da análise, a burguesia nacional, quase todos os herdeiros de companhias industriais familiares, que se confrontavam com o desembarque das corporações multinacionais. Pudemos lutar contra o processo de desnacionalização das empresas brasileiras, que haviam adquirido o ânimo do crescimento durante os anos 50. Mas, infelizmente não nos foi posível impedir o golpe de Estado que viria em 1964.

     Carvalho Pinto, então Ministro da Fazenda de João Goulart, sugeriu meu nome ao Presidente para compôr o Conselho Nacional de Economia, formado por nove conselheiros. A Darcy, como chefe da Casa Civil, coube dar formalidade própria à nomeação, fazendo publicar no "Diário Oficial" e tomando as medidas práticas e políticas para a aprovação de meu nome no Senado Federal, posse e o exercício do cargo.

     No Conselho pude agir na defesa dos interesses nacionais brasileiros, mesmo durante os primeiros meses do governo militar. A relativa liberdade de imprensa permitiu-me conhecer a política econômica. Ameaçados permanentemente de cassação dos direitos políticos, sitiados pelas autoridades financeiras do novo regime, que procuravam impedir o desenvolvimento de nossas empresas, José Ermírio e eu resistíamos. A minha condição de conselheiro nacional de economia me autorizava contestar, no órgão, os projetos e decisões do governo. Ainda que fosse sempre vencido, os jornais concediam-me espaço, e isso irritava o governo. Como o meu mandato estava amparado na Constituição vigente, o presidente Castelo Branco se viu obrigado a extinguir o Conselho, afim de silenciar-me. Estinguiu o Conselho, mas se viu obrigado, dada a sua constitucionalidade, a colocar os seus membros em disponibilidade remunerada, até o fim de seus mandatos. Pedi imediatamente minha demissão, uma vez que não me sujeitaria à humilhação de receber sem trabalhar.

     Por esse tempo, Darcy já se encontrava no exílio. Estive com ele em Montevidéu, onde permaneceu por algum tempo, juntamente com o Presidente João Goulart, Leonel Brizola, Valdir Pires, Almino Affonso e outros eminentes homens públicos. Encontrei-o, também, em Santiago do Chile em julho de 1964. O poeta brasileiro Tiago de Mello ocupara a casa que outro poeta (a irmandade dos poetas é sempre solidária), o grande Pablo Neruda, mantinha na capital de seu país, embora a usasse muito raramente, uma vez que vivia em sua mansão da Isla Negra. E foi nesta casa de Santiago que nos vimos, em um jantar oferecido por Tiago de Mello. Ali estávamos vários brasileiros, entre eles Adão Pereira Nunes, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. Darcy nos confidenciou que estava a caminho da França, viajando pela costa do Pacífico, porque os aviões que partiam de Montevidéu e de Buenos Aires pela costa do Atlântico faziam escala no Brasil, e ele não podia correr o risco de ser preso no Rio ou em São Paulo. Disse-nos que ia a Paris com a esperança de avistar-se com De Gaulle e obter ajuda para derrubar o regime militar no Brasil. Sabíamos que a empreitada parecia impossível, mas não tínhamos o direito de esmorecê-lo.

     A noite era de Darcy. Enquanto todos nós nos sentíamos amuados, alguns condenados já ao exílio e outros à espera de que tivessem que passar pela mesma experiência, como era o meu caso, ele parecia excitado diante do desafio de afrontar a ditadura. Contou-nos que, durante algumas horas, no Rio, enquanto se desenvolvia o processo golpista, e entrincheirado no Palácio das Laranjeiras, se sentira com poderes imperiais. O Presidente da República voara para o Sul do País, acompanhado do Chefe da Casa Militar, o general Assis Brasil. Com isso, ele acumulava suas funções de Chefe da Casa Militar. O Ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, estava no hospital, gravemente enfermo, o que o fazia também - e em tese - comandante das Forças Armadas terrestres. Naquele momento, chegou o Ministro da Marinha, a fim de pedir sua demissão, uma vez que não concordava  com a insubmissão dos marinheiros e graduados da Armada.

     - Tive a a agradável sensação do poder absoluto - disse-nos, um pouco na galhofa, um pouco na seriedade.

     - Agora está explicado porque estamos aqui - comentou Celso Furtado, com ironia equilibrada entre o humor e a amargura.

     Darcy não teve filhos. Essa circunstância talvez o tenha impelido a sair galopando em todas as direções, como o conde de Rocambole, no famoso achado literário de Ponson du terrail. De sua associação afetiva e intelectual com Berta Ribeiro, com quem se casou muito moço, surgiram obras clásicas de antropologia. O jovem pesquisador, que passara anos entre os índios, dormindo em redes, enfrentando os mosquitos, obrigado à dieta de mandioca, peixes e bananas, sentiu-se estimulado pela companheira a publicar trabalhos científicos de reconhecimento internacional. Ao ingresssar na política, Darcy deixou a antropologia pela observação de Marx, de que o mundo, mais do que ser explicado, necessita ser transformado.

     A passagem entre o antropólogo e o político se deu durante sua experiência acadêmica. Convidado por Juscelino para conceber e dirigir a Universidade de Brasília, Darcy chegou ao Planalto como quem chegasse a um continente vazio. As suas idéias eram, ao mesmo tempo, simples e provocadoras. O Brasil, assim ele entendia, estava sendo redescoberto e portanto, refundado. Essa refundação admitia toda ruptura com o passado, todo compromisso com o futuro. Quando João Goulart o chamou para chefiar a Casa Civil, Darcy não relutou. De sua nova posição poderia tranquilamente continuar monitorando o projeto inovador da Universidade. O golpe militar, entre outros prejuízos que trouxe para o povo brasileiro, interrompeu a experiência inovadora da UNB. Ao entregar a reitoria da UNB a um comandante da Marinha, não obstante seus títulos acadêmicos, o governo ditatorial demonstrou o propósito de domar o centro universitário, regredindo-o à morna realidade do ensino superior brasileiro.

     Depois de alguns meses em Montevidéu, Darcy partiu para a diáspora dos exilados. Vimo-nos, certa vez em Paris, e outra vez, em Lima, no Peru. onde ele assessorava o Grupo Andino. Na residência do jornalista mineiro Guy de Almeida, seu companheiro de trabalho, tivemos um jantar memorável, Dele também participava o poeta Ferreira Gullar, que preparava um ensaio sobre Augusto dos Anjos, que editei depois de concluído. Darcy surpreendeu o poetra maranhense, recitando poemas inteiros do vale paraibano, ao qual Darcy atribuia certa cidadania mineira, pelo fato de morrido em Leopoldina e ali haver escrito alguns de seus melhores versos.

     De volta ao Brasil, acometido de câncer e desenganado pelos médicos, Darcy reocupou o seu espaço político com um pouco de cautela, mas sem renunciar às suas idéias e muito menos à sua dignidade. Enganou o câncer, esquivou-se da morte, e quando, passados longos anos, o inimigo poderoso voltou. Darcy ainda conseguia driblá-lo por vários meses, depois de fugir do hospital e escrever um de seus livros comoventes sobre o povo brasileiro. Os seus últimos vinte anos foram os mais férteis da vida. Teve a alegria de receber o voto popular, como vice-governador do Rio de Janeiro e Senador da República; revolucionou o ensino primário com os CIEP's, escolas públicas de ensino primário de tempo integral, gratuito, que além de educar proporciona aos seus alunos alimentação necessária ao seu desenvolvimento físico e mental; deu ao carnaval o seu espaço arquitetônico, com o sambódromo, projetado por Niemayer, e criou a Universidade de Campos. O Parlatino a ele deve o seu espaço físico, uma vez que dele partiu a idéia do Memorial da América Latina, imediatamente aceita pelo então governador Orestes Quércia. E graças à sua insistência, conforme a introdução deste livro, a sede do Parlatino foi construída rapidamente. E é de lembrar-se que também a ele devemos haver estimulado Oscar Niemayer a aceitar a tarefa de projetar todo o conjunto arquitetônico. A amizade entre os dois grandes brasileiros é uma referência emotiva de nosso tempo. Entre outros projetos realizados pela criatividade de ambos se encontra a Universidade de Argel.

     Sinto-me honrado por escrever estas linhas no pórtico de América Latina Nação, que reune pequenos e densos ensaios de Darcy. Ele foi um desses homens que, em cada geração, reafirmam o compromisso dos povos com a sua nacionalidade, compromisso a que chamamos sentimento de Pátria. E, tal como Bolívar, esse sentimento e esse compromisso não aceitavam as fronteiras da colonização, exigindo o reconhecimento de uma pátria maior, a pátria latino-americana. Essa pátria maior que encontrou, no Memorial da América Latina a sua sede cultural, e no Parlamento Latino-Americano, sua expressão política.

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Apresentação de América Latina Nação. São Paulo, Cadernos do Parlatino, nº 13, jan. 1998.