Volta para a capa
Memória

Encontros com Darcy Ribeiro

Maria da Paz Rodrigues


      O antropólogo está com pele de jaguar, vestido de romancista. Escreveu Maíra no exílio, nos dias cinzentos de Lima, longe do calçadão de Copacabana. Sem poder olhar a Avenida Atlântica, mulher bonita, cachorro, bicha. Voltou agora, há pouco mais de um ano. E ficou um tempo com uma alegria enorme, só de andar pelas ruas, de zanzar por aí.
       Darcy Ribeiro não pretende ser coerente, gosta de suas contradições. Acha que não está construído, sente que não tem idade. Ainda pode mudar de idéias ou vestir uma nova pele. Já teve muitas. Uma como jovem revolucionário estudantil, lá pelos anos 40. Outra de cientista, de etnólogo pelas selvas brasileiras. Foi Ministro da Educação, Chefe da Casa Civil do governo Jango. Depois cobriu-se com o couro de exilado político, de sapateiro remendão de universidades no exterior. Assustou-se em 1974: câncer. Tirou um pulmão. Mas o tiro saiu sem pontaria. As pernas seguiam caminhando.


– Alô, sou eu. (…) – Vou bem, e você? (…) – Lauro? Pompeu querido, como vai? (…) – Você está bom? Onde está? (…) – Aqui no Rio? (…) – Precisamos nos ver. (…) – Vai ficar vários dias aqui? (…) – Ah, dá uma chegadinha se puder. Não vou sair, estou meio gripadão. (…) – Se estiver com medo de gripe não vem não. (…) – É entre a Figueiredo Magalhães e a Santa Clara.


– Como é mesmo? Eu estava dizendo besteira, que era brilhante mas não inteligente. Sou inteligentíssimo, pensando bem.


Você tem certeza?

– Sei que não sou inteligente. Tenho a certeza dolorosa. Sinto freqüentemente um limite, uma parede. Chego aqui e não vou adiante. E para furar esse muro é sempre um trabalho brutal. Mas quando me comparo aos outros me acho fantástico. Comparativamente. Absolutamente, sou burro. Burro. Não, limitado. Sei do que não sei em quantidade espantosa. E não estou certo de nada do que sei. Brilhante, sou. Capaz de me enganar, de enrolar as pessoas.


E quando escreve?


– Tudo o que faço é o melhor possível naquele momento. Mas depois de 15 dias já desconfio. Por isso tomo o cuidado de não reler meus livros. Só quando há outra edição e o editor obriga. Aí começo a me achar burro, tudo é insuficiente e ruim. Genial é só o que acabei de fazer.


O que você faz melhor?

– Namorar.


É?


– Não. Não sou muito bom namorador, você não acha? Esse meu jeito sério. Engano, brinco comigo. Não acredito nesse negócio de se apaixonar, de ficar gostando dos outros sem limite. Para mim é uma enfermidade e exige medidas preventivas. O amor dá febre, suores noturnos, ataque cardíaco.


– Você já teve isso?


– Poucas vezes, mas quando começa eu fujo. Olha, deixa de bobagem, você não queria conversar assuntos sérios?

     Ele sempre agiu com a ousadia dos inscientes. Acreditava-se imortal. Para atravessar a avenida, andar de avião. O câncer o colocou em presença da morte. Pela primeira vez a sentiu provável, andou vários meses de mãos dadas com ela. Mas avisou: não haveria segunda operação. Não queria ser um pedacinho de gente, pulsando desconjuntado, graças a um milagre médico.

     Com a idade passou a perceber o tempo de outra forma. Detesta fazer a barba, enfrentar o espelho de manhã. É a hora de se encarar. Não pode ficar indiferente, há uma mudança. Isso também aconteceu outro dia quando olhou uma fotografia antiga, tomando posse como Ministro da Educação. Era um menino bonito, ficou com saudades dele. O contraste da cara de 1961 para cá estava muito evidente.
      Ainda assim faz força para acreditar que o importante de sua vida virá. Está tudo no futuro, não no passado. Inventa um ritmo, canta, debocha dele mesmo: “Esse grande amor, aquele livro formidável, o romance total, a ação pública salvadora.” Fica sério. “A velhice é terrível, a idéia de sermos definitivos. Em certa idade é preciso tomar a iniciativa. Decidir. Pronto, acabou.”


– Não gosto nada quando na França me chamam de ancien Ministre. Ancien a p.q.p. Sempre evito o ex. Mas agora começo a desconfiar. Cinqüenta e quatro anos, pode ser que não. Pô… sou só a testemunha do que fiz? Isso é uma merda. O tremendo e o belo da vida é ela ser um leque. Aos dez anos está abertíssimo. Você poderia ser freira, p…, sábia para ganhar prêmio Nobel, brilhante escritora, grande jornalista, dona de casa, imbecil, lésbica. Aos 20 já teria que excluir algumas hipóteses, aos 30 mais ainda, aos 50, aos 54 está muito fechado. Já não posso ir à lua nem ser Papa. É uma perda. O tempo passa e as possibilidades se estreitam.


     Na casa da família em Montes Claros entravam apenas dois jornais: Ave Maria e Minas Gerais, o órgão oficial onde escreviam os velhos senhores. Descobriu a notícia com 16 anos folheando o Ave Maria. “Havia uma guerra espanhola com uns comunistas interessados em comer freiras.” Poxa, que doidura é essa? Não dava para entender. Mas o tio voltou do Rio trazendo uma revista Argentina: Pan. Devorou o número, releu tantas vezes que ficou todo amarfanhado. Aprendeu um montão de coisas e o motivo verdadeiro da Guerra Civil Espanhola.
      Era o menino mais chato da cidade. Falador, adultinho. Discutia com os tios, lia muito. Aquelas coleções de romances em treze volumes de literatura espírita, ensaios. Por safadeza olhava livros de anatomia. Não dançava, quase não tinha vida social.
      Em 1940 leu o primeiro livro importante. Conhecia um livreiro chamado Paulo Tanderman que, a pedido de Chico Campos, Ministro da Justiça, importava obras marxistas da Argentina. Recebeu dois exemplares de uma publicação da Editorial Claridad: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels. Darcy ficou entusiasmado, decorou muitas passagens. Trinta anos mais tarde, publicaria O Processo Civilizatório numa tentativa de reescrever esse livro. Depois veio o Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado e muitos outros. O ambiente abriu-se um pouco com a entrada do Brasil na guerra, a informação começou a circular.
      Foi para a universidade procurando o mesmo prestígio do tio médico. Entrou com 18 anos para mexer em cadáveres, formol, doentes. Nessa época começou a escrever um diário. Vivia angustiado com a obsessão da morte e do suicídio. Preparou um romance de 300 páginas, A Lapa Grande. A história de um cego que entra numa gruta, participa de uma série de acontecimentos até recuperar a vista. Aí vê a cara da mãe: feia, horrível. O original chegou a ser mandado para um concurso da José Olímpio. Não ganhou. “Felizmente. Seria um vexame. O suficiente para começar mal a carreira.”
      O barulho da campainha é suave. Pompeu entra. Abraços de velhos amigos, de quem não se encontra há muito. Darcy senta novamente na poltrona de couro bege, o útero, como costuma dizer. Descalço, moreno de praia. Blue jeans e camisa xadrez aberta no peito. Riem sem parar. E contam histórias esquecidas da Universidade de Brasília, do trabalho que fizeram juntos: “Formula aí, Pompeu. Estamos gravando.”


– Ih rapaz, não esqueço aquele almoço. Nunca tinha falado contigo, você estava num canto, brilhante. Quase no fim um amigo virou para mim e perguntou: Quem é aquele gênio com cara de Paulo Mendes Campos? Era Darcy. E parece que andou conseguindo certas facilidades dizendo que era poeta.


      Ele tomava bomba em Medicina todo o ano e ficava frustrado. Decidiu que convinha mais estudar Filosofia. Fez um ano e meio encantado com as babaquices dos gênios mineiros de 1942. Kantistas, tomistas. Mas apareceu um professor americano de Sociologia, Donald Pierson, com uma descoberta nova: a Sociologia Moderna.
      O professor se encantou com Darcy. Levou-o para São Paulo e propôs que começasse o curso outra vez, do primeiro ano. Solução sensata, aceitou. E ingressou no ambiente universitário onde estavam integrados profissionais de outro nível: Levi Strauss, Roger Bastide, Radcliffe–Brown, Herbert Baldus. Quando voltou para Minas, em 1950, para inaugurar a Escola de Sociologia havia um contraste visível entre a sua mentalidade e a dos estudantes de Filosofia. Acharam que tinha torrado, lido muito, você é um “cdf” desgraçado.
      Não. Leu até menos. Mas percebeu que a erudição é uma enfermidade do espírito. E o espírito erudito passa a comer-se, a alimentar-se sozinho. Em São Paulo descobriu a funcionalidade de uma formação cultural de base científica. Poderia ser um instrumento de conhecimento do mundo. Preparado não para ler e lembrar as leituras acumuladas, mas para adquirir uma nova visão olhando diretamente para a realidade.
      Foi treinado para fazer pesquisa, assimilou uma postura funcionalista. Tentava entender o mundo através de um interesse simultâneo na cultura, na pesquisa e na política. Procurava se situar na época do após guerra. O saber deixou de ser um ato de gozo para se transformar num meio de análise. Mas ainda não conseguia mexer no concreto, no real.
      Nessa época não notou que possuía duas consciências que se desconheciam. Essa questão só se colocou mais tarde, em 65, em função de muitas experiências e desilusões. Exercendo o poder, observou que os cientistas podiam aplicar um milhão de dólares para fazer pesquisas bem elaboradas sobre temas irrelevantes. Mas no momento de dar soluções concretas para os problemas, tinham a dar pouco ou menos que qualquer politicão profissional.
      Uma consciência era a do cientista. Competente, capaz de fazer os estudos mais complicados sobre a estrutura de parentesco, arte e religião dos índios. Estava desligada da outra. De cidadão que se situava, votava, agitava politicamente. Aí era tão irresponsável como um discutidor de café.
      Evoluiu entre os índios. A princípio, aceitando abrir mão de saber o mundo para entender só um pedacinho. Ou que a castração está implícita na especialização. Seu papel seria contribuir para melhorar o discurso das ciências sociais sobre a natureza do homem, colocar apenas uma vírgula, um ponto e vírgula. Mas a experiência foi tão rica que nunca conseguiu esgotá-la. Chegou a ser índio. E ao entrar em outra pele, pôde olhar também para ele.


– Nós vivemos como quem nasceu num edifício e nunca saiu. Imagina uma criança. Ela vê preciso sair para ver. Você nasce falando português, é a língua que está aí, aprende uma quantidade de imagens sobre o mundo, sobre Deus, sobre o Diabo, o bem, o mal, o gostoso e o azedo. Fórmulas feitas. Não olhamos para nada, não somos capazes de enxergar nem o amarelo. Apelidamos uma porrada de cores diferentes de amarelo. A cultura doméstica é estreita. E para sair é preciso entrar em outra, de preferência numa variante. Se eu fosse para a França como muitos brasileiros seria um desses intelectuais viajados, ambíguos. Foram penetrados por outros e deixaram de ser eles. Na minha experiência incorporei o sentimento da indianidade, o drama dos povos inviáveis, massacrados pela civilização. E a beleza enorme dessa gente com o gozo no corpo. Capaz de comer, de f…, de lamber, de amar sem nenhum sentimento de pecado. Estamos marcados pela herança judaica da cristandade, tudo é pecaminoso. Lá é ao contrário, o corpo é uma glória. Deus vem trepar, vem olhar os amarelos, os vermelhos, experimentar o gosto. Tudo isso é muito bom.


      A sirene invade o apartamento. Intermitente, sufocante. O carro de polícia demora para passar, para romper o congestionamento da Avenida Atlântica. Darcy continua. Raciocina, expressa um pensamento complexo, refletido. Com segurança, sabendo que convence. No meio pára, conta uma história, fala dele e brinca.


– Algum aspecto na minha personalidade estará marcado por não ter sido disciplinado. Nunca experimentei a autoridade em casa, meu pai morreu quando tinha três anos. Além de não ter pai, não tive filho para dominar. Não fui domesticado, sou ignorante.


Lembra daquela vez que você tingiu de azul a água da cidade?


      O tio tinha uma farmácia e o farmacêutico estava ocupado com o balanço do ano. Usava frases retumbantes, segurava os medicamentos para ditar: tanto de tanto. Pegou três pacotes de azul de metileno e foi comentando com jeito importante: “Isto aqui daria para pintar o Oceano Atlântico.” Darcy ouviu, roubou um quilo e foi procurar Zé Paraíso.


– Juro, dá mesmo. Este pó tem prestígio oceânico.

     Mas em Montes Claros não havia nada parecido com o Atlântico. Água mesmo só no tanque de abastecimento. Foram para lá com uma dúvida: Será veneno? A vontade de testar foi maior. Jogaram e a água correu azulada pelas torneiras. Quando voltou a mãe já esperava, a cidade inteira sabia de quem era a culpa.


       Experiência.
      Visitou outras tribos antes de chegar lá e mesmo assim ficou com medo. Seria seu povo, viveria, ali, meses. Kadiwéu, um grupo Guaicuru do sul de Mato Grosso. Recém formado, nem sabia como provocar o diálogo. Uma tarde, deitado na rede, abriu um livro de Guido Boggiani, um etnólogo e artista italiano, que havia estado com a tribo no fim do século passado para fazer registros de desenhos de corpo e artefatos. Os índios se aproximaram interessados: “De quem são esses papéis?” Não podia dizer que comprara na livraria, eram dele. Então a velha Anoã encontrou numa página o retrato de uma índia chamada Ligui. Perplexa, compôs um canto: “Vejo outra vez a Ligui, como ela foi jovem e bela.” Afinal entenderam-se. O Boggiani de Darcy era Betra para eles, tinha nome indígena. E passou a ser tio-avô do antropólogo que recebeu também um apelido tribal: Betra Iegue.
     Chegava como homem ligado ao Serviço de Proteção aos Índios, como papai grande. Também como doutor, contribuindo para dificultar o relacionamento. Precisava romper a primeira barreira, a definição dada pelos índios ao burocrata, ao funcionário. A segunda, como doutor. Devia chegar a ser gente. Isso só acontecia quando percebiam que ele não vinha dar presentes antes de conversar muito. Era perguntador, queria saber de tudo.
      Fizeram uma brincadeira. Ele estudava a etnologia indígena, eles a civilizada. Quem nunca havia saído da aldeia fazia perguntas genéricas. Quem é o dono do sal, do fósforo, do aço? Darcy não mentia, falava longamente, explicava. Com respostas complexas, detalhadas. Não há dono, há um processo de fabricação.


– Em determinado instante percebi que havia algo podre no meu jogo. O importante era o destino dos índios, que estavam sendo esmagados. Comecei a identificar-me com eles ao contrário da maioria dos etnólogos que estudam índios como cobaias. Nesse momento incorporei nos meus estudos o destino dos índios como tema fundamental. Escrevi um livro provando que de 230 tribos existentes em 1900, 87 desapareceram até 1957. Pelo efeito acumulativo de doenças, pela exploração econômica.

      Uruguai, 1964.
      Leu trezentos livros de ciência e ficção, um ou mais por dia. Já não se satisfazia com mistério, ficção científica, soltava a imaginação. O personagem num quarto fechado com quatro paredes, assoalho, forro, capaz de sair pela parede. Curtiu uma angústia intensa: deixava uma posição de responsabilidade no Governo e se encontrou de repente no exílio.
      Conseguiu um emprego na faculdade, depois de uma semana, como professor de Antropologia: Vantagens da máfia universitária. Quatro anos depois recebeu o título de Doutor Honoris Causa, o 14º concedido em 150 anos pela única universidade do país. Mas o trauma era grande. Só começou a passar quando viu que a situação brasileira ia durar.
      Retomou uma pesquisa iniciada aqui, antes de assumir a Universidade de Brasília. Em um ano concluiu um livro de 500 páginas e no momento de mandar para o editor desistiu. Era apenas uma repetição do que os outros diziam, faltava uma teoria para entender o Brasil. Engavetou o original e decidiu trabalhar nos estudos de Antropologia da Civilização. Seis livros para situar o Brasil em relação à Grécia Antiga, China, para interpretar a história pelo ângulo dos colonizados. “E entender porque nossos povos fracassaram na história, só conseguiram um desempenho de segunda classe.”
      Nessa fase tentou fundir as duas consciências. Pensar como cientista a experiência política vivida e atuar com base numa postura científica. Com isso descobriu que os literatos, os estudiosos são apenas uma parcela da intelectualidade. E existem três num nível pós-secundário: o tipo universitário, o sacerdotal e o militar. Custou muito a ver que a diferença entre um intelectual e um militar era a mesma entre um estudante de Filosofia e outro de Engenharia, e não entre um universitário e um idiota.
     Em 1968 as notícias pareciam sair mais livres na imprensa, os estudantes organizavam-se e iam para a rua. Darcy acreditou na possibilidade e tomou um avião. Passou onze meses aqui. Quatro e meio na Marinha e tempo igual no Exército. Mas sempre arranjou uma saída. Fugia da prisão todos os dias de duas formas. Uma: dormindo, sonhando. Outra: exercitando o espírito, como os jesuítas. Pensava durante horas numa fuga, elaborava um plano detalhado. Brincava de liberdade.
      Por exemplo: a secretária chamou o diretor do Patrimônio Histórico Nacional. Doutor Soeiro, telefone, é Darcy Ribeiro. Ele estava preso na Fortaleza de Santa Cruz em Niterói. Seria trote? Não, a voz veio forte do outro lado da linha.


– Soeiro? Você autorizou a modificarem a fachada aqui da fortaleza? A fazerem obras?
– Não? Estão fazendo. Dizem que foram autorizados. Vão destruir o patrimônio.


      Pompeu sai, a entrevista prossegue. Varia de um assunto para outro, de índios para lembranças. Presente e futuro. Darcy usa uma linguagem viva, intelectualizada, mas próxima da realidade. Cheia de exemplos, comparações. Fala da universidade necessária, das loucuras de Oscar Niemeyer.


– No ano 3000 seremos total e absolutamente ignorados. Mas todos saberão de Oscar, será o Da Vinci da época. Como hoje há barroco, haverá um estilo com outro nome, Brasília é o protótipo.


      Ela ainda o trata como criança. Quando pega um copo de uísque, dá bronca, se puder ela tira das mãos dele. É dona Fininha, mãe de Darcy, uma velhinha que já é nome de rua. Queriam escolher uma professora primária para denominar a avenida nova. A mais conhecida era ela, tinha alfabetizado mais gente. A única desvantagem era o nome complicado: Josefina Augusta da Silveira Ribeiro. Então decidiram: Avenida Mestra Fininha.


– Aprendi a namorar minha mãe. Antes não tinha assunto, perguntava sobre os encontros com papai. A última vez cheguei lá, dei a mão e ficamos vendo televisão. Novela. Não acontece quase nada na vida dela, raramente algum neto casa ou quebra o braço. Na TV é uma maravilha, os fatos se sucedem com a intensidade que ela precisa. Ela pega meu braço, vibra, aponta o vídeo: “Olha aí Darcy, aquele bandido”.


O que você sente hoje, com essa obra enorme, com 54 anos. Acredita que realizou um trabalho de vanguarda?


– Creio que andei passo a passo com os outros antropólogos, às vezes me antecipando. Com a ciência ocorre algo semelhante às estações, há momentos em que certas idéias estão maduras para serem colhidas. Isso pode ser expresso de forma mais abstrata. A consciência possível é uma antecipação, tornando-se necessária em outra época. E a consciência necessária já correspondente de tal forma aos fatos que não pode ser ignorada. Pensei simultaneamente com cientistas que trabalhavam no México, na Argentina e no Egito, sem estar em comunicação com eles, colhendo uma nova safra de idéias praticáveis. Muitos e eu estamos na vanguarda de um repensar da Antropologia. Dispostos hoje, mais do que nunca, a fazer uma crítica severa ao que foi a ciência social em geral. A Antropologia serviu de base a teorias racistas que fizeram tanto mal a pensadores brasileiros. Posteriormente sustentou uma quantidade de posições colonialistas, sobretudo na África. A responsabilidade da ciência é armar o povo, ser um instrumento para a melhoria de vida. Nós não devemos nos exercer profissionalmente na mesma medida que um botânico. Ele poderia não ver os efeitos da civilização emprestando à natureza. Mas, quando se trata de seres humanos, ver a deterioração, percebê-la e senti-la solidariamente, é indispensável.


       Sonho
      Três pessoas ligadas à Universidade de Brasília estavam juntas. Darcy, Heron de Alencar, Oscar Niemeyer. Na panela sideral giratória, metálica. Enorme. A panela rodava, o cabo batia nas estrelas, na Via Láctea. Tim, tum. Encostados numa extremidade não conseguiam sequer ver a curva, viam uma parede lisa, cor de ferro. Cada um tinha uma faca para caçar os homens sem coração. Todos estavam no fundo da panela, gente com coração e sem, eles se aproximavam devagar, encostavam o ouvido no peito do inimigo e tentavam escutar a pulsação. Quem não tivesse seria morto. Mas havia também o perigo de ser assassinado antes, eram caça e caçadores. Num determinado momento Oscar segura Darcy pelo braço e avisa: “Cuidado, a esfera da memória está aí”. Era parecida com a esfera armilar portuguesa e já estava sobre eles, em cima da panela. Quem olhasse perderia a memória. Acordou suando, angustiado. E guarda a idéia até hoje. Da morte como perda da memória.


– Pode escrever aí: Maíra é a coisa mais séria publicada depois de Homero. Ele tomou toda a mitologia grega, uma confusão danada, e unificou tudo num texto admirável. Eu reuni amitologia discordante de quarenta tribos brasileiras e compus uma gênese. Agora, nós, da tribo Mairum, inventada por mim, sabemos de onde viemos, o que somos e para onde vamos. Graças a meu trabalho homérico. Mas veja, se Maíra não é bom para o leitor, para o autor foi ótimo. Curti muito escrevendo. Foi uma dessas brincadeiras, no exílio fingia estar no Brasil.


     Durante muitos anos foi seu romance terapêutico. A primeira vez que pensou nele estava quase louco de cansaço mental, de esgotamento. Vivia em Montevidéu, tentava escrever O Processo Civilizatório. Esforçavase e não conseguia terminar. Já não dormia. Fechava os olhos e via as civilizações antigas organizadinhas, alinhadas num gráfico. Acordava no meio do pesadelo, percebia que era engano, ficava irritadíssimo.
      Seguiu o conselho do médico e tirou férias. Foi para um hotelzinho no interior do Uruguai mas levou todos os livros, remédios e tentou continuar. Uma noite, uma italiana esquentou um vinho ótimo e ofereceu para beberem juntos. Conversando, já meio bêbado, percebeu que estava apossado pela idéia como um polvo agarrado a um corpo. E a única forma de acabar com isso era substituir por outra obsessão. Fez a operação: tirou O Processo Civilizatório e colocou Maíra na cabeça, ainda sem esse nome. Doze dias depois estava pronta a estrutura do livro, a seqüência de capítulos. Trabalhou dia e noite e ficou curado. Terminou O Processo Civilizatório três meses mais tarde.

      Retomou Maíra na prisão, em 1968 e concluiu no Peru, modificado pela experiência do câncer, após extrair um pulmão. Foi seu trabalho mais visceral. Pôde expressar uma sabedoria diferente da tecnicalidade do saber científico. Entrou no seu eu de 1950 e as palavras de tupi foram saindo naturalmente, na ponta do lápis. Estava encharcado de memória. Relatava dezenas de episódios vividos com os índios que nunca pensou poder lembrar.
      Há muito tempo queria se exprimir literariamente. Nos ensaios científicos cavalgava seu espírito, comandava. Realizava aquilo a que se propunha com dificuldade, com tentativas frustradas, sempre com a sensação de alcançar pouco. De chegar apenas a um saber provisório, de inadequado. No romance um tema o cavalgou: saiu como queria, espontâneo. E o livro pronto parece não ser dele. Possui uma quantidade de trechos reveladores de partes tão íntimas que até ele ignorava.


– Se eu tenho alguma sabedoria na minha vida de antropólogo, de etnólogo, ela não se expressa nos livros científicos. Está em Maíra. É onde dou a percepção mais profunda dos índios e das fronteiras da civilização. O tema é a morte de Deus, descobri depois de terminar. Todos os povos do mundo estão pedindo que Deus volte. Os cristãos clamam pelo novo Cristo, os índios querem o regresso dos gênios míticos, responsáveis pelas grandes façanhas na construção do mundo. Em Maíra, Deus nasce, mas nasce morto porque este é um mundo sem remédio. Porque a tragédia indígena é total, radical. Não dá para dar um jeitinho, um happy end. Na realidade, o primeiro capítulo é também o último. São várias tentativas de explicação da morte dos gênios míticos. O livro é um círculo, mas ao fazê-lo não sabia disso.


      Darcy estica o braço, desliga o gravador. Pô…, estou cansado! São mais de 11 horas da noite, a conversa começou depois do almoço. Ele recebeu sete telefonemas, não fumou um único cigarro, apenas tomou café. Domingo. Chegou ao meio-dia de Porto Alegre, não queria dar a entrevista. Mas acabou aceitando. Trouxe a cassete e apertou o botão para gravar.
      Quer tomar banho, ficar tranqüilo. Antes chega ao escritório para mostrar o projeto de texto de seu último romance. O original está rabiscado, datilografado e corrigido a lápis: Mulo – Confissão e Testamento de Filogônio Maia. Um homem de 54 anos, brasileiro do interior, revela seus pecados a um padre. Abre a pasta, pede para ler alto uma página. Ri, quer uma opinião. Mas não muda nada, já fez seu julgamento. Vai até a porta.


– Chega. Nem mais uma pergunta.

     Quase sem perceber, começa a responder.


– Era sobre o futuro? Sobre o ano 2500, 3000? Os homens serão um ato de criação, serão projetados. Talvez não tenham nada a ver conosco. Nós somos os animais mais indefesos que há na Terra, levamos a opção cultural ao extremo. Aniquilamos duas mil espécies de animais para substituí-los por vacas e ovelhas. Destruímos a natureza com o pretexto de humanizar a paisagem. E fizemos de nós seres culturais cada vez mais pobres e complexos.


      Nisso há uma idéia que o apavora: no futuro, a cultura, a personalidade será fruto da vontade. Alguém programará seus netos.
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Fonte: Versus (São Paulo), nº 11, junho de 1977

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